sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Não saberei nunca
dizer adeus.
Afinal,
só os mortos sabem morrer.

- Mia Couto

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

As unhas sujas daqueles dedinhos deviam estar apertando a
moeda na linha do tiro a mãozinha aberta a moeda
estacou ficou cara a cara a moeda do pão
na roleta russa apertou perdeu
foi um tiro só
que não mata engorda



Leticia Tandeta Tartarotti 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Passeio público

Solitário moribundo
tatuado num chão de praça
crepuscular
assiste em pleno dia
ao fim da estranha dança
em que pés e pombos
se interrompem
num ruído de poeira
que se ergue
sobre escombros humanos
majestosa e indiferente.

Janina Daou

terça-feira, 15 de julho de 2014

Dorme abismo meu, os reflexos dirão
que o descompromisso é total
mas tu até em sonhos dizes que todos
estamos comprometidos que todos
merecemos salvar-nos."

Roberto Bolaño

segunda-feira, 14 de julho de 2014

ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas
e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade
ainda assim
só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho
essa casa
onde mora o coração

Gil T. Sousa
Em baixo da cama, um susto acordado. O terror de entender o que temia. Vão descoberto, caixa do vazio. Vento empossado no chão preso a terra. Antes de dormir estendo a mão, varro a distancia. Depois do sono o teto, o tempo. O sonho do esquecimento. Em baixo da cama, lugar do último hospede do primeiro risco.  O tombo depois da queda. Da cama escorrega o que é pesado, a casca, o farelo da manhã. Em baixo os fantasmas escondem seus medos e as crianças fingem fugir.  Em cima, tento entender o que está por dentro.


Fernanda Tatagiba

terça-feira, 8 de julho de 2014

quinta-feira, 3 de julho de 2014

“E, aquele Que não morou nunca em seus próprios abismos Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas Não foi marcado. Não será exposto Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.”
manoel de barros

terça-feira, 24 de junho de 2014

Ninguém se disse adeus, e na ausência de luz alguém está morrendo sozinho. Cada vez que não morremos parece-me que demos um passo para trás, progredimos no sentido inverso, chegamos, pois que nos levantamos para prosseguir.
(...)
A noite despencou e quebrou três estrelas"

Ana Cristina César 

domingo, 22 de junho de 2014

a poeira é o gramado do tempo

flor cinza 
esquecida
pendurada
na esquina da viga 

limpam 
por que não tem 
mais volta



Fernanda Tatagiba
tirar o medo e não colocar a coragem no lugar pode fazer as coisas serem elas mesmas, nada mais assustador


Fernanda Tatagiba
Eu acabarei, pois me entreguei sem arte a quem me saberá perder e acabar


Do Amor e Outros Demônios -  Gabriel Garcia Marques 

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Solidão

Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.
E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.
Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por coisa esquecida.

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa

terça-feira, 17 de junho de 2014

As Nuvens

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são gestos brancos
da cantora muda;
São estátuas em voo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;
São o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;
São a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados
a medicina, branca!
Nossos dias brancos.

João Cabral de Melo Neto

domingo, 15 de junho de 2014

Seus canários
estavam sucumbindo como moscas
todas as manhãs
havia outro
duro
no fundo da gaiola
o veterinário disse
que era devido a bactérias
na água que estavam bebendo
mas ele próprio sabia
que era
pela maneira como estamos vivendo


Sam Shepard no Crônicas de Motel

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O signo vem marcado, em toda a sua laboriosa gestação, pelo escavamento do
corpo. O acento, que os Latinos chamavam anima vocis, coração da palavra e matéria prima do ritmo, é produzido por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdominais do diafragma. Quando o signo consegue vir à luz, plenamente articulado e audível, já se travou, nos antros e labirintos do corpo, uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do diafragma, as esponjas dos pulmões, dos brônquios e bronquíolos, o tubo anelado e viloso da traquéia, as dobras retesadas da laringe (as cordas vocais), o orifício estreito da glote, a válvula do véu palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca, onde topará ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras dos dentes ou brandas dos lábios. 


O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. O percurso, feito de aberturas e aperturas, dá ao som final um proto-sentido, orgânico e latente, pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua busca de significar. O signo é a forma da expressão de que o som do corpo foi potência, estado virtual.


Alfredo Bosi - O Ser e o Tempo na Poesia 
por isso cuida-te ama o que fazes e faça-o com tudo que tens qualquer que seja seu trabalho põe individualidade nele esforça por por qualquer coisa de único de diferente de teu há aventura até em fazer embrulho há campo de criação até na redação de faturas 

ser todo em cada coisa põe quanto eis no mínimo que fazes assim em cada lago a lua toda brilha por que alta vivi

tudo é encontrar qualquer coisa mesmo perder é achar o estado de ter essa coisa perdida nada se perde só se encontra qualquer coisa

sentir é buscar  



Elisa Lucinda sobre Fernando Pessoa

segunda-feira, 9 de junho de 2014

38




eu
estou
te pedindo
querida é pra
que mais poderia um
não mas não é o que
claro mas você não parece
entender que eu não posso ser
mais claro a guerra não é o que
imaginamos mas por favor pelo amor de Oh
que diabo sim é verdade que fui
eu mas esse eu não sou eu
você não vê que agora não nem
sequer cristo mas você
precisa compreender
como porque
eu estou
morto


E. E. Cummings.
O tempo vai passando e vemos tantas coisas ruins que a pele vai ficando dura, a gente fica sensível como um rinoceronte.

Luiz Cláudio Marigo

sábado, 7 de junho de 2014

as cicatrizes no corpo
dizem menos que a pele lisa 
as rachaduras por dentro 
não fazem o formato da boca 
se esconde do grito 
mergulha no olho arregalado
a parte atingida
que não fugiu com a dor 

Fernanda Tatagiba
Já faz um bocejo que eu não te vejo há tanto tempo 
Tento escrever para sentir esse efeito na face que é a sua ausência
Meu nome é vermelho no rosto
Se alguém me visse agora 
veria não um, mas uma horda 
uma orla 
Viria correndo dizendo 
te vi outro dia
Flagrei uma pena em mim de nós dois 
dos bons tempos aqueles 
Uma pena do pássaro que teríamos sido 
e que pena que o passo foi mais largo que as pernas 
Penas de um travesseiro em que deitamos 
como cavalos 
que se deitam pra morrer


Vitor Paiva 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Poderoso pra mim não é aquele que descobre ouro. 
Para mim poderoso é aquele que descobre 
as insignificâncias (do mundo e as nossas)
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.

Sou fraco para elogios 


Manoel de Barros 
o poeta:
sujeito com mania de comparecer
aos próprios desencontros 


Manoel de Barros 
a criança erra na gramática e acerta na poesia

Manoel de Barros 
oh, sim
Há coisas piores do que
ficar sozinho
mas isso, frequentemente, leva décadas
para ser percebido
e, geralmente,
quando você percebe,
é tarde demais
e não há nada pior
do que
tarde demais.


Bukowski
Todo o homem é culpado do bem que não fez.
voltaire

quinta-feira, 5 de junho de 2014

quem é dono do fim é escravo do começo


Fernanda Tatagiba

SONETO II

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

A luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à note, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.



Mário Faustino 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

O Beijo

Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca
Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?
É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim

Ana Martins Marques

terça-feira, 3 de junho de 2014




a gente não veio ao mundo para ter responsabilidade a gente tem responsabilidade para viver no mundo
O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória


Mário Faustino 

segunda-feira, 2 de junho de 2014



se nos fosse permitido escolher, talvez hesitássemos muito 

Wislawa Szymborska 


"a poetisa prefere as partidas do acaso, a força das circunstâncias e a ironia do destino à liberdade absoluta da escolha e à possibilidade de ser tudo e todos."

Maria Teresa Swiatkiewcs sobre Szymborka 
Sinto como se houvessem escrito ofensas em minha lápide;
Sinto um tremor: Como se outra pessoa houvesse confessado e morrido pelos meus pecados
E não houvesse sido Jesus Cristo, apenas uma desconhecida cantora de jazz em Cuba;
Sinto como se neste exato momento alguém cavasse um buraco
Um buraco lento e seco e irregular embaixo de minha casa,
E temo que descubram o local exato onde enterrei a criança que eu costumava ser.
E neste buraco plantem uma árvore trêmula de flores brancas que assombrará meus dias
 
(...)

Rodrigo Ribeiro 
Escolhi pra mim as duas carreiras mais ingratas de que tenho conhecimento, a de escritor, que é vista com cada vez mais descrença no Brasil, e a de pintor: "Tá, mas você trabalha em quê?" - eles dizem. Sabia o tempo todo das dificuldades que passaria nessas carreiras, portanto isso não é uma reclamação, mas uma constatação.

A sociedade brasileira salienta a si um pragmatismo estúpido, que almejaresultados de cunho direto, imediato, reprovando o interesse pela edificação e o processo lento, o cultivo do caráter moldado desbastada por desbastada.

Há uma força incalculável sendo desperdiçada por culpa do desprezo pela literatura, pela poesia, pelo teatro, pelas artes. Isso porque daqui são enxotados os que fazem de seu esclarecimento e sua infinita curiosidade a fome que alimenta as próprias paixões. E se você se encaixa na estirpe de pessoas observando os pingos coloridos por detrás da trama cinza que compõe as metrópoles, se se depara diariamente com multidões cuja letargia do cotidiano te comove justamente por não se sentir parte dela, se da sua mente prolifera uma inquietude hedionda que superlota o espaço dessa redonda caixa onde se esconde seu cérebro, então, meu amigo, infelizmente você faz parte da gama famigerada de sujeitos que não se importam muito com aquilo que a maioria intenciona. Você não pertence a um mundo de concretudes racionais, é seu o Mundo Sensível (subentenda como sensível, nos dias atuais, tudo aquilo que é facilmente vítima de preconceito), portanto tema por sua própria alma!

No entanto, saiba também que mesmo estando sempre marginalizados, os seus habitantes, apesar de sofrerem mais, ao alcançarem o sucesso são tão preciosos - e a maioria um tanto mais célebres - quanto aos que nadam a favor da maré pela força do hábito. É aqui, no campo da subjetividade, do pensamento complexo, da vida intensa de ardores e da visão genuína, que residem os verdadeiros líderes criativos, os pensadores e vanguardistas - aqueles que movem os vagões da história.

Inspire-se. Não desista. O nosso caminho por vezes soa insuportável, às vezes é mesmo, entretanto ao resignar da própria sede, terá renunciado não só a si mesmo, mas também a um futuro de potências devastadoras, pois acredite: o coração, daqueles que sentem e enxergam o mundo de uma maneira completa e enlouquecidamente original, é um lar de sonhos possíveis.


Márcio Couto 

domingo, 1 de junho de 2014

(...) recusando a certeza, o acabado das frases feitas, em nome de sua verdade, o ironista nega não porque não crê, como o cético, mas porque nada pode garantir; recusando a escolha, tudo arrisca; vendo, manifesta o jogo de oposições que lhe é dado perceber; declarando-o, intervêm, e a sua intervenção (...) é recusa de solução das contradições. 

Ferraz no livro A Ironia Romântica
nesta primavera, os pássaros chegaram cedo de mais
alegra-te, razão, o instinto também erra


Wislawa Szymborska  
mal distinguiu o sonho da realidade 
mal se deu conta que ele é ele 
mal se converteu em mão a antiga barbatana (...)
persegue a razão com a razão (...)
liberdade, onisciência e ser vão-lhe a cabeça (...)
coitado
um verdadeiro homem


Wislawa Zsymborska 


sem nós não haveria sonhos
desconhece-se
aquele sem o qual não haveria realidade
e o produto de sua insônia 
é dado 
a quem desperta


Wislawa Szymborska 
prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem


wislawa szymborska

sábado, 31 de maio de 2014

os mais variados carrascos, ditadores, fanáticos e demagogos, que lutam pelo poder com a ajuda de meia dúzia de slogans, também gostam do seu trabalho e também o fazem com imaginação. Sim. Mas eles sabem. Sabem. E o que sabem chega-lhes para a vida inteira. Nada mais lhes interessa, pois o resto poderia enfraquecer a força de seus argumentos. Mas o saber que não dá origem a novas perguntas, rapidamente se torna um saber morto. Nos casos mais extremos, como sabemos da história antiga e recente, esse saber consegue ser uma ameaça mortal para a sociedade. Por isso, eu tenho em grande estima duas pequenas palavras: não sei. 


Wislawa Szymborka 
A fugacidade dos sonhos leva a que a memória os sacuda facilmente de si
 A realidade não tem que recear o esquecimento
Pesada é a sua arte
Senta-nos no pescoço, pesa-nos no coração, enreda-se nos pés
Dela não há fuga possível porque em cada fuga nossa a temos por companhia
E não há estação no decurso da viagem em que não esteja à nossa espera

Wislawa Szymborska 

museu

Há pratos, mas falta apetite.
Há alianças, mas o amor recíproco se foi
há pelo menos trezento anos.
Há um leque –onde os rubores?
Há espada– onde a ira?
E o alaúde nem ressoa na hora sombria.
Por falta de eternidade
juntaram dez mil velharias (…)
A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a uva.
A bota direita derrotou a perna.
Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.
Minha competição com o vestido continua.
E que teimosia a dele!
Como ele adoraria sobreviver!


Wislawa szymborska 

Coração batendo sem que se ouça


Dias se sucedem,
                            semanas se sucedem,
torvelinham
                    num galope célere;
como se cavalgássemos
                                       sobre um tempo de aço
voando
 – olhos abertos –
     pelo espaço.
Assim a vida,
                      ela nos atravessa –
o ouvido zoa,
                      o coração dispara,
como
        se quisesse
                           saltar para
fora,
         – é só o que lhe resta!
Se alguém
                  tenta detê-lo,
                                        ele se altera:
toca a rebate,
                      dá por paus e pedras!
E quantas vezes
                           o coração
                                            explode
e não se ouve
                       a explosão
                                         que o sacode.


Nicolai Assiéivev

Tradução de Haroldo de Campos

por todas as manhãs gastas em coisas ordinárias
como escola, roupas e chão da casa
nas passagens de anos 
- gritos em baixo dos estouros
na estreiteza imperfurável que separa
os dias 

muita atenção
para não ser descoberta
nossa falta


Fernanda Tatagiba

sexta-feira, 30 de maio de 2014

pra que a pressa?
o amor acabou

devolver o choro 
aos filmes
e a graça
aos outros

pra que a pressa?
terminamos 
antes do limite do fim
ainda há tempo
de lembrar
de esquecer de novo 

o amor acabou 
recolhemos a dança
de março 
depois da chuva

pra que a pressa?
correremos juntos
um para cada lado


Fernanda Tatagiba

quinta-feira, 29 de maio de 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

a casa
incansável em se guardar 
talhada na parede
vende os retratos 

chão dos pássaros
entorta a chuva 

abriga os homens 
mas não deixa
suas janelas

sem rumo

em todo canto

a casa parou
para alguém
passar




Fernanda Tatagiba

Sabedoria

Desde que tudo me cansa, 
Comecei eu a viver. 
Comecei a viver sem esperança... 
E venha a morte quando 
Deus quiser. 

Dantes, ou muito ou pouco, 
Sempre esperara: 
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco 
Voava das estrelas à mais rara; 
Outras, tão pouco, 
Que ninguém mais com tal se conformara. 

Hoje, é que nada espero. 
Para quê, esperar? 
Sei que já nada é meu senão se o não tiver; 
Se quero, é só enquanto apenas quero; 
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar. . . 
E venha a morte quando Deus quiser. 

Mas, com isto, que têm as estrelas? 
Continuam brilhando, altas e belas. 

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'

segunda-feira, 26 de maio de 2014

isso é um fato
na companhia de tolos
nós relaxamos em
aterros ordinários,
apreciamos comida ruim,
bebida barata,
conhecemos homens e
mulheres do
inferno.
na companhia de tolos
jogamos os dias fora como
guardanapos de papel.
com essa companhia
nossa música é alta e nosso
riso
falso.
não temos nada a perder
além de nós mesmos.
junte-se a nós
nós somos agora
quase que
todo o
mundo.
Deus nos
abençoe

Bukowski 
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio 
Ter curiosidade no outro não é só tarefa do escritor mas um imperativo moral

Amos  Oz


e quando, novamente brigamos...
você sem pensar direito diz: vou embora!
eu, porque penso demais, digo : então vai!
eu torço pra que você não tenha coragem de ir.
você torce pra eu ter coragem de pedir pra você ficar.
E você tem coragem de ir, infelizmente.
E me falta coragem de pedir pra você ficar, infelizmente.
E a porta bate, mais uma vez.
E nunca sei se você voltará, embora sempre tenha voltado.
e não temos coragem de perguntar se ficamos com outras pessoas nesse tempo que estivemos afastados um do outro.
e no fundo , pouco importa, porque, no fundo, no fundo, pouco importa.
E o que mais quero é te contar tudo de bom que aconteceu enquanto você esteve longe.
Mas, acontece que nada aconteceu de bom enquanto você esteve longe, justamente porque você esteve longe.
e só assim percebo, que preciso,
de você, por perto,
e sem saber de tudo isso que escrevi.
Você desiste da ideia de ir embora. e diz:
Sei que você precisa de mim! Eu também preciso de você! Por isso voltei!

Felipe Araujo
O que não cola aos olhos
se recolhe às dobras da voz em trevas para outra noite
reticente nos lábios infinitos do murmúrio
atados pelo impulso da maré escura
que dimana no silêncio no momento
em que o pulso separa as mil peles do escombro
e o ser expulso gira no interlúdio
ao sair do tumulto ilusório que gera a cegueira
por não conter a febre em seus enclausuráveis poros.


Contador Borges

domingo, 25 de maio de 2014

Dois, como necessário ao abraço. Um, como possível no beijo. Encarnados no começo. A inocência da timidez descoberta. O amor sem a forma de outros nomes. Ainda novos, apesar de jovens. Andam despreocupadamente juntos. Alguém poderia passar nesse instante entre eles, na calçada, e desatar as mãos. Tiraria um pedaço do infinito, antecedendo o fim. O único amor que não sabe que é o primeiro. Alguém poderia passar ali e dizer para aproveitar, mas continuaram como antes. Ou contar que tudo não passa de um momento, que acabaria em alguns anos. Espalhados em bancos, em baixo de árvores, dedos entre as mãos, seguem duvidando.


Fernanda Tatagiba 
Consegui viver até hoje porque desde cedo adestrei-me a me perturbar, a me criar tormentos, a tentar me destruir: confiando sempre nas minhas grandes reservas de eletricidade. Renasço cada dia dos meus próprios crimes. Viver é refazer o erro

Murilo Mendes

sábado, 24 de maio de 2014

sexta-feira, 23 de maio de 2014

coração


É tão leve o espelho que sua decisão é voar
gostaria de achar um céu:
alto alto celeste grande grandíssimo
em contato
uma grandeza
(é agora que se nos revela um ínfimo cristal)
Nada disto pode escrever:
o gesto que traça a liberdade ea liberdade dos limites
O espelho bate
dobra sobre si a musculatura
torce em hélice e, finalmente, voltar encartar
A grandeza
que não guarda relação com a medida
pensasse no coração
"Você tem que termar das águas
sua decisão é voar "
Nada se assemelha ao mundo
que é separado e desigual e outro
mundo tudo o que é
Nunca termina nunca o inferno
e nunca é verdade
Como a sombra do céu nas águas
e da floresta no céu das águas
rítmico
como um dia de nevoeiro
É enxuto permanecer aqui
(um deserto abra qualquer crença e também a fortaleza abra)
é liberada agudo estreito


Chus Pato
qualquer problema
que você tiver
comigo
é seu 


Bukowski 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Mergulha desde já na substância infinita.
Agora e sempre.
Cartas a Spinoza- Nise da Silveira

Fartura e Carência

Mas o pior é o súbito cansaço de tudo. Parece uma fartura, parece que já se teve tudo e não  se quer mais nada. Cansaço dos Beatles. E cansaço também daqueles que não são. Cansaço inclusive de minha liberdade íntima que foi tão duramente conquistada. Cansaço de um amar o outro. Melhor seria o ódio. O que me salvaria dessa impressão de fartura - é fartura ou uma liberdade de que está sendo inútil? - seria a raiva. Não um tipo de raiva amorosa que existe. Mas a raiva simples e violenta. Quanto mais violenta, melhor. Raiva dos que não sabem de nada. Raiva também dos inteligentes do tipo que dizem coisas. Raiva do cinema novo, por que não? E o outro cinema também. Raiva da afinidade que sinto com algumas pessoas, como se já não houvesse fartura de mim em mim. E raiva do sucesso? O sucesso é uma gafe, é uma falsa realidade. A raiva me tem salvo a vida. Sem ela o que seria de mim? Como suportaria eu a manchete que um dia saiu no jornal dizendo que cem crianças morrem no Brasil diariamente de fome? A raiva é a minha revolta mais profunda de ser gente? Ser gente me cansa. E tenho raiva de sentir tanto amor. Há dias que vivo de raiva de viver. Porque a raiva me envivece toda: nunca me senti tão alerta. Bem sei que isso vai passar, e que a carência necessária volta. Então vou querer tudo, tudo! Ah como é bom precisar e ir tendo. Como é bom o instante de precisar que antecede o instante de se ter. Mas ter facilmente, não. Porque essa aparente facilidade cansa. Até escrever está sendo fácil? Por que é que eu escrevia com as entranhas e neste momento estou escrevendo com a ponta dos dedos? É um pecado, bem sei, querer a carência. Mas a carência de que falo é mais plenitude do que essa espécie de fartura. Simplesmente não a quero. Vou dormir porque não estou suportando este meu mundo hoje, cheio de coisas inúteis. Boa-noite para sempre, para sempre. Até sábado que vem. E não me respondam: não quero ouvir a voz humana. E se suporto a minha voz se despedindo é porque ela piora de muito a minha raiva. Só uma raiva, no entanto, é bendita: a dos que precisam.


Clarice Lispector