terça-feira, 24 de junho de 2014

Ninguém se disse adeus, e na ausência de luz alguém está morrendo sozinho. Cada vez que não morremos parece-me que demos um passo para trás, progredimos no sentido inverso, chegamos, pois que nos levantamos para prosseguir.
(...)
A noite despencou e quebrou três estrelas"

Ana Cristina César 

domingo, 22 de junho de 2014

a poeira é o gramado do tempo

flor cinza 
esquecida
pendurada
na esquina da viga 

limpam 
por que não tem 
mais volta



Fernanda Tatagiba
tirar o medo e não colocar a coragem no lugar pode fazer as coisas serem elas mesmas, nada mais assustador


Fernanda Tatagiba
Eu acabarei, pois me entreguei sem arte a quem me saberá perder e acabar


Do Amor e Outros Demônios -  Gabriel Garcia Marques 

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Solidão

Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.
E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.
Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por coisa esquecida.

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa

terça-feira, 17 de junho de 2014

As Nuvens

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são gestos brancos
da cantora muda;
São estátuas em voo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;
São o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;
São a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados
a medicina, branca!
Nossos dias brancos.

João Cabral de Melo Neto

domingo, 15 de junho de 2014

Seus canários
estavam sucumbindo como moscas
todas as manhãs
havia outro
duro
no fundo da gaiola
o veterinário disse
que era devido a bactérias
na água que estavam bebendo
mas ele próprio sabia
que era
pela maneira como estamos vivendo


Sam Shepard no Crônicas de Motel

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O signo vem marcado, em toda a sua laboriosa gestação, pelo escavamento do
corpo. O acento, que os Latinos chamavam anima vocis, coração da palavra e matéria prima do ritmo, é produzido por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdominais do diafragma. Quando o signo consegue vir à luz, plenamente articulado e audível, já se travou, nos antros e labirintos do corpo, uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do diafragma, as esponjas dos pulmões, dos brônquios e bronquíolos, o tubo anelado e viloso da traquéia, as dobras retesadas da laringe (as cordas vocais), o orifício estreito da glote, a válvula do véu palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca, onde topará ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras dos dentes ou brandas dos lábios. 


O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. O percurso, feito de aberturas e aperturas, dá ao som final um proto-sentido, orgânico e latente, pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua busca de significar. O signo é a forma da expressão de que o som do corpo foi potência, estado virtual.


Alfredo Bosi - O Ser e o Tempo na Poesia 
por isso cuida-te ama o que fazes e faça-o com tudo que tens qualquer que seja seu trabalho põe individualidade nele esforça por por qualquer coisa de único de diferente de teu há aventura até em fazer embrulho há campo de criação até na redação de faturas 

ser todo em cada coisa põe quanto eis no mínimo que fazes assim em cada lago a lua toda brilha por que alta vivi

tudo é encontrar qualquer coisa mesmo perder é achar o estado de ter essa coisa perdida nada se perde só se encontra qualquer coisa

sentir é buscar  



Elisa Lucinda sobre Fernando Pessoa

segunda-feira, 9 de junho de 2014

38




eu
estou
te pedindo
querida é pra
que mais poderia um
não mas não é o que
claro mas você não parece
entender que eu não posso ser
mais claro a guerra não é o que
imaginamos mas por favor pelo amor de Oh
que diabo sim é verdade que fui
eu mas esse eu não sou eu
você não vê que agora não nem
sequer cristo mas você
precisa compreender
como porque
eu estou
morto


E. E. Cummings.
O tempo vai passando e vemos tantas coisas ruins que a pele vai ficando dura, a gente fica sensível como um rinoceronte.

Luiz Cláudio Marigo

sábado, 7 de junho de 2014

as cicatrizes no corpo
dizem menos que a pele lisa 
as rachaduras por dentro 
não fazem o formato da boca 
se esconde do grito 
mergulha no olho arregalado
a parte atingida
que não fugiu com a dor 

Fernanda Tatagiba
Já faz um bocejo que eu não te vejo há tanto tempo 
Tento escrever para sentir esse efeito na face que é a sua ausência
Meu nome é vermelho no rosto
Se alguém me visse agora 
veria não um, mas uma horda 
uma orla 
Viria correndo dizendo 
te vi outro dia
Flagrei uma pena em mim de nós dois 
dos bons tempos aqueles 
Uma pena do pássaro que teríamos sido 
e que pena que o passo foi mais largo que as pernas 
Penas de um travesseiro em que deitamos 
como cavalos 
que se deitam pra morrer


Vitor Paiva 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Poderoso pra mim não é aquele que descobre ouro. 
Para mim poderoso é aquele que descobre 
as insignificâncias (do mundo e as nossas)
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.

Sou fraco para elogios 


Manoel de Barros 
o poeta:
sujeito com mania de comparecer
aos próprios desencontros 


Manoel de Barros 
a criança erra na gramática e acerta na poesia

Manoel de Barros 
oh, sim
Há coisas piores do que
ficar sozinho
mas isso, frequentemente, leva décadas
para ser percebido
e, geralmente,
quando você percebe,
é tarde demais
e não há nada pior
do que
tarde demais.


Bukowski
Todo o homem é culpado do bem que não fez.
voltaire

quinta-feira, 5 de junho de 2014

quem é dono do fim é escravo do começo


Fernanda Tatagiba

SONETO II

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

A luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à note, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.



Mário Faustino 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

O Beijo

Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca
Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?
É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim

Ana Martins Marques

terça-feira, 3 de junho de 2014




a gente não veio ao mundo para ter responsabilidade a gente tem responsabilidade para viver no mundo
O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória


Mário Faustino 

segunda-feira, 2 de junho de 2014



se nos fosse permitido escolher, talvez hesitássemos muito 

Wislawa Szymborska 


"a poetisa prefere as partidas do acaso, a força das circunstâncias e a ironia do destino à liberdade absoluta da escolha e à possibilidade de ser tudo e todos."

Maria Teresa Swiatkiewcs sobre Szymborka 
Sinto como se houvessem escrito ofensas em minha lápide;
Sinto um tremor: Como se outra pessoa houvesse confessado e morrido pelos meus pecados
E não houvesse sido Jesus Cristo, apenas uma desconhecida cantora de jazz em Cuba;
Sinto como se neste exato momento alguém cavasse um buraco
Um buraco lento e seco e irregular embaixo de minha casa,
E temo que descubram o local exato onde enterrei a criança que eu costumava ser.
E neste buraco plantem uma árvore trêmula de flores brancas que assombrará meus dias
 
(...)

Rodrigo Ribeiro 
Escolhi pra mim as duas carreiras mais ingratas de que tenho conhecimento, a de escritor, que é vista com cada vez mais descrença no Brasil, e a de pintor: "Tá, mas você trabalha em quê?" - eles dizem. Sabia o tempo todo das dificuldades que passaria nessas carreiras, portanto isso não é uma reclamação, mas uma constatação.

A sociedade brasileira salienta a si um pragmatismo estúpido, que almejaresultados de cunho direto, imediato, reprovando o interesse pela edificação e o processo lento, o cultivo do caráter moldado desbastada por desbastada.

Há uma força incalculável sendo desperdiçada por culpa do desprezo pela literatura, pela poesia, pelo teatro, pelas artes. Isso porque daqui são enxotados os que fazem de seu esclarecimento e sua infinita curiosidade a fome que alimenta as próprias paixões. E se você se encaixa na estirpe de pessoas observando os pingos coloridos por detrás da trama cinza que compõe as metrópoles, se se depara diariamente com multidões cuja letargia do cotidiano te comove justamente por não se sentir parte dela, se da sua mente prolifera uma inquietude hedionda que superlota o espaço dessa redonda caixa onde se esconde seu cérebro, então, meu amigo, infelizmente você faz parte da gama famigerada de sujeitos que não se importam muito com aquilo que a maioria intenciona. Você não pertence a um mundo de concretudes racionais, é seu o Mundo Sensível (subentenda como sensível, nos dias atuais, tudo aquilo que é facilmente vítima de preconceito), portanto tema por sua própria alma!

No entanto, saiba também que mesmo estando sempre marginalizados, os seus habitantes, apesar de sofrerem mais, ao alcançarem o sucesso são tão preciosos - e a maioria um tanto mais célebres - quanto aos que nadam a favor da maré pela força do hábito. É aqui, no campo da subjetividade, do pensamento complexo, da vida intensa de ardores e da visão genuína, que residem os verdadeiros líderes criativos, os pensadores e vanguardistas - aqueles que movem os vagões da história.

Inspire-se. Não desista. O nosso caminho por vezes soa insuportável, às vezes é mesmo, entretanto ao resignar da própria sede, terá renunciado não só a si mesmo, mas também a um futuro de potências devastadoras, pois acredite: o coração, daqueles que sentem e enxergam o mundo de uma maneira completa e enlouquecidamente original, é um lar de sonhos possíveis.


Márcio Couto 

domingo, 1 de junho de 2014

(...) recusando a certeza, o acabado das frases feitas, em nome de sua verdade, o ironista nega não porque não crê, como o cético, mas porque nada pode garantir; recusando a escolha, tudo arrisca; vendo, manifesta o jogo de oposições que lhe é dado perceber; declarando-o, intervêm, e a sua intervenção (...) é recusa de solução das contradições. 

Ferraz no livro A Ironia Romântica
nesta primavera, os pássaros chegaram cedo de mais
alegra-te, razão, o instinto também erra


Wislawa Szymborska  
mal distinguiu o sonho da realidade 
mal se deu conta que ele é ele 
mal se converteu em mão a antiga barbatana (...)
persegue a razão com a razão (...)
liberdade, onisciência e ser vão-lhe a cabeça (...)
coitado
um verdadeiro homem


Wislawa Zsymborska 


sem nós não haveria sonhos
desconhece-se
aquele sem o qual não haveria realidade
e o produto de sua insônia 
é dado 
a quem desperta


Wislawa Szymborska 
prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem


wislawa szymborska