sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"morrerá em breve"
mas há tempo 
para não pensar nisso 

" Daqui a cinco anos"
foi trabalhar 
no dia seguinte

"dentro de alguns meses"
cuidado!
esquece

"duas semanas"
viu o pôr-do-sol 
agora
um tom 
a mais 

"último instante"
e não dá tempo
de terminar um poema 


Fernanda Tatagiba

Retratos

Sábado:
Nunca havia reparado nele antes. Na verdade não tem nada que o diferencie dos demais. As mesmas roupas coloridas, os mesmos cabelos enormes, o mesmo ar sujo e drogado. Nunca os vira de perto como hoje. Da janela do apartamento eles pareciam formar uma única massa ao mesmo tempo colorida e incolor. Isso não me interessava. Nem me irritava. Mesmo assim cheguei a assinar uma circular dos moradores do prédio pedindo que eles se retirassem dali. Mas não aconteceu nada. Falaram-me no elevador que alguém muito importante deve protegê-los. Achei engraçado: parecem tão desprotegidos.
Creio que foi isso que me levou a descer até à praça hoje à tarde. Sim, deve ter sido. Não achei nada de estranho neles, nada daquilo que a circular dizia. Só estavam ali, de um jeito que não me ofendia. Um deles sorriu e me fez o retrato. Era como os outros, exatamente como os outros, a única coisa um pouco diferente era aquele colar com uma caveira. Todos usam colares, mas nenhum tem caveira. Uma pequena caveira, O retrato está bom. Não entendo nada de retratos, mas acho que está bom. Vou mandar colocar uma moldura e pregar no corredor de entrada.
Domingo:
Saí para comprar o jornal e encontrei com ele. Perguntou se eu queria fazer outro retrato. Eu disse: já tenho um, para que outro? Ele sorriu com uns dentes claros: faça um por dia, assim o senhor saberá como é seu rosto durante toda a semana. Achei engraçado. Você fará sete, então — eu disse. Ele disse: sete é um número mágico, farei sete. Pediu que eu sentasse no banco de cimento e começou a riscar. Observei-o enquanto desenhava. Na verdade, ele não se parece com os outros: está sempre sozinho e tem uma expressão concentrada. De vez em quando erguia os olhos e sorria para mim. Achei estranho porque nunca ninguém sorriu para mim — nunca ninguém sorriu para mim daquele jeito, quero dizer. A mão dele é muito fina, meio azulada. Quando desenha, tem uns movimentos rápidos. Quando não desenha fica parada. Às vezes chega a ficar parada no ar. É tão estranho. Nunca vi ninguém ficar durante tanto tempo com a mão parada no ar.
Enquanto ele desenhava, eu sentia vergonha — estava de terno, aquele terno velho que uso aos domingos, e gravata. Também não tinha feito a barba. A garrafa de leite pesava na minha mão, o jornal começava a manchar as calças de tinta. Por um momento senti vontade de sentar no chão, como eles. Creio que achariam ridículo. Me contive até que terminasse. Quando estendeu a folha eu não pude me conter e disse que tinha gostado mais do de ontem. Ele riu: sinal que no sábado seu rosto é melhor que no domingo. Paguei e vim embora. O de hoje está ao lado do de ontem. Pareço mais velho, mais preocupado, embora os traços sejam os mesmos. Amanhã perguntarei seu nome.
Segunda-feira:
Tinha me esquecido dele até a hora de voltar para casa. Trabalhei muito o dia inteiro. Voltei cansado, com vontade de tomar banho e dormir. Ele me encontrou na porta do edifício. O nosso trato, disse. Eu disse ah, sim, e acompanhei-o até a praça. Ele caminha devagar, não parece perigoso como os outros. Não sei exatamente o que, mas existe nele qualquer coisa muito diferente. Às vezes penso que vai ter uma tontura e cair. É quando fecha os olhos comprimindo uma das mãos contra a cabeça. Acho que sente fome. Pensei em convidá-lo para comer comigo, mas desisti. Os vizinhos não gostariam. Nem o porteiro. Além disso o apartamento é muito pequeno e está sempre desarrumado porque a empregada só vem uma vez por semana. Anda sempre descalço, tem os pés finos como as mãos. Parece pisar sobre folhas, não sei explicar, não existem folhas na praça. Não agora, só no outono. As unhas são transparentes. E limpas.
Quando estava terminando de desenhar, perguntei o seu nome, O meu nome não são letras nem sons — ele disse —, o meu nome é tudo o que eu sou. Quis perguntar que nome era, mas não houve tempo, ele já me estendia a folha de papel. Paguei e não olhei. Só vim olhar aqui em cima. Fiquei perturbado: não estou mais moço como ontem e anteontem. A cara que ele desenhou é a mesma que vejo naquele espelho da portaria que sempre achei que deforma as pessoas. Coloquei o papel em cima da mesa, ao lado dos outros. Depois achei melhor pregar na parede do quarto, em frente à cama. Espiei pela janela, mas não consegui distingui-lo no meio dos outros.
Terça-feira:
Quando saí, pela manhã, procurei por ele. Queria convidá-lo para tomar a média comigo no bar da esquina. Mas não o vi. Ontem à noite fez frio. Ouvi dizer que eles dormem na praia. De madrugada fiquei pensando nele, estendido na areia sobre aquele casaco militar puído que ele tem. Senti muita pena e não consegui dormir. Foi difícil trabalhar hoje. Percebi que a secretária tem as pernas peludas e o chefe está muito gordo. Sei que isso não tem importância, mas não consegui esquecer o tempo todo. De tardezinha, ele me esperou na esquina. Disse: hoje é o quarto. Faltam três, eu respondi. E senti um aperto por dentro. Tem uns olhos escuros que ficam fixos, parados num ponto, do mesmo jeito que as mãos no ar. A calça está rasgada no joelho. Nunca o vi falar com ninguém. Os outros ficam sempre em grupo, falando baixinho, olhando com desprezo para os de terno e gravata como eu. Ele está sempre sozinho. E não me olha com desprezo.
Terminou de desenhar e me ofereceu uma margarida junto com o papel. Eu nem tinha reparado que havia margaridas na praça. Para falar a verdade, acho que nunca tinha visto uma margarida bem de perto. Ela é redonda. Não exatamente redonda, quero dizer, o centro é redondo e as pétalas são compridas. O centro é amarelo, cheio de grãos. As pétalas são brancas. Coloquei num copo com água e um comprimido dissolvido dentro, disseram que faz a flor durar mais. O retrato é muito feio. Não que seja malfeito, mas é muito velho, tem uma expressão triste, cinzenta. Fiquei surpreso. Cheguei a sentir medo de me olhar no espelho. Depois olhei. Vi que é a minha cara mesmo. Acho que ele caprichou mais no primeiro porque não me conhecia: agora que sou freguês pode me retratar como realmente sou. Percebi que as vizinhas me observavam quando eu falava com ele.
Quarta-feira:
O dia custou a passar. São todos tão pesados no escritório que o tempo parece custar mais a passar. Logo que os ponteiros alcançaram as seis horas, apanhei o casaco e desci correndo as escadas. Esbarrei com o chefe no caminho. Percebi que ele caminha mal por causa dos pés inchados. Fiquei olhando para os pés dele: não parece pisar folhas. Na rua, vi uma vitrine cheia de colares, pensei que ele gostaria de um. Achei que seria bobagem, o mês está no fim, o dinheiro anda curto. Mas não me contive. Voltei e entrei na loja. A moça me olhou com uma cara estranha. É para minha filha, menti. Trouxe o embrulho pesando no bolso, com medo que ele não estivesse na esquina. Estava. De longe o vi, muito magro e alto. Baixei a cabeça fingindo preocupação. Ia passando por ele, mas me segurou pelo braço. Segurou devagar. Mesmo assim senti a pressão de seus dedos. Fazia frio. Perguntei a ele se não sentia frio. Disse: não esse mesmo frio que o senhor sente. Não entendi.
O desenho ficou muito feio. Coloquei-o na parede, ao lado dos outros. Pareço cada dia mais velho. Acho que é porque não tenho dormido direito. Tenho olheiras escuras, a pele amarelada, as entradas afundam o cabelo. Apertei a mão dele. É muito fria. Faltam só dois. Descobri hoje que seus olhos não são completamente escuros. Têm pequenos pontos dourados nas pupilas. Como se fossem verdes. As vizinhas me observavam pelas janelas e falavam baixinho entre si. Pela primeira vez deixei de cumprimentá-las.
Quinta-feira:
Novamente não consegui dormir. Fiquei olhando os retratos na parede branca. E horrível a diferença entre eles, envelheço cada vez mais. Senti muito medo quando pensei no sétimo retrato. E fechei os olhos. Quando fechei os olhos julguei sentir na testa o mesmo contato frio de sua mão na minha, ontem à tarde. Um toque frio e ao mesmo tempo quente, ao mesmo tempo forte e ao mesmo tempo leve. De repente lembrei do que ele disse no dia em que me deu a margarida. Flor e abismo. Ou seria:
flor é abismo? Não lembro. Sei que era isso. Não sei como tinha esquecido. Levantei para olhar a margarida. Continuava amarela e branca, redonda e longa.
O dia no escritório foi desesperador. Errei várias vezes nos cálculos. Fui grosseiro com a secretária quando ela me chamou a atenção. Ela ficou ofendida, foi fazer queixa ao chefe. Temi que ele me chamasse em sua sala, mas isso não aconteceu. Pretextei uma dor de cabeça para sair mais cedo. Sentei num bar e tomei duas cervejas. Quando botei a mão no bolso senti o peso do colar que não tive coragem de dar a ele. A cidade estava toda cinzenta, embora houvesse sol. As pessoas tinham medo no rosto. Dez para as seis, me levantei. Ele estava no mesmo lugar. Precisei me conter para não correr até ele. Tratei-o com frieza. Mas quando ele disse que o dia estava bonito hoje, não pude me segurar mais e sorri. Estava realmente um bonito dia, as pessoas todas alegres. Não olhei para ele, não quero que pense que sinto inveja ou qualquer coisa assim.
Trouxe o retrato embrulhado. Pela primeira vez, o ascensorista não me cumprimentou nem abriu a porta do elevador. Pareço um cadáver no retrato. Não, é exagero. Estou mesmo muito abatido. Mas não tenho aquela pele esverdinhada. Continua fazendo frio. Amanhã comprarei uma cama, quero convidá-lo para dormir aqui nestas noites frias. Direi que a cama é de minha irmã que está viajando. Não tive coragem de dar a ele o colar, poderia pensar coisas, não sei. Amanhã não comprarei cigarros para poder pagar o último retrato.
Sexta-feira:
Trabalhei só pela manhã, hoje. Ao meio-dia senti que não suportava mais aquele ambiente, aquelas pessoas pesadas como elefantes esmagando os tapetes, aquelas máquinas batendo. Disse ao chefe que me sentia mal. Ele foi compreensivo. Disse que notou que ando meio abatido. Tirei um vale, menti que era para comprar remédio. Entrei num cinema, assisti a duas sessões seguidas esperando as seis horas. No filme tinha um moço de motocicleta parecido com ele, só parecido, descobri que não existe ninguém igual a ele. Lembrei da minha infância, não sei por que, e chorei. Fazia muito tempo que eu não chorava. Às seis horas, fui até a praça. Mas ele não estava. Subi para tomar banho. Daqui a pouco vou descer de novo. Não sei por que, mas estou chorando outra vez.
Mais tarde:
Aconteceu uma coisa horrível. É muito tarde e ele não veio. Não consigo compreender. Talvez tenha ficado doente, talvez tenha sofrido um acidente ou qualquer coisa assim. É insuportável pensar que esteja sozinho, com suas mãos paradas no ar, ferido, talvez morto. Chorei muitas vezes olhando a margarida que ele me deu. Logo hoje que ia desenhar o último retrato, que eu ia dar a ele o colar, convidá-lo para dormir aqui, para comer comigo. Acabei de tomar três comprimidos para dormir, estou me sentindo amortecido. Amanhã talvez ele venha.
Sábado:
Acordei muito cedo e fui para a praça. Mas não consegui encontrá-lo. Tomei coragem, aproximei-me dos outros e perguntei onde ele andava. Alguns nem responderam. Outros ficaram irritados, perguntaram o nome? mas o senhor não sabe nem o nome dele? Eu fiquei com vergonha de repetir o que ele tinha dito. Não fica bem para um homem da minha idade dizer essas coisas. Ninguém sabia. Descrevi seu jeito, seu rosto, sua calça azul furada no joelho, suas mãos, aos poucos fui perdendo a vergonha e falei no seu caminhar sobre folhas, das suas mãos paradas no ar, seus olhos fixos. Ninguém sabia. Perguntei às vizinhas. Três delas me bateram com a porta na cara, resmungando coisas que não entendi. Outras duas disseram que tinham quartos para alugar, o que também não entendi. Saí a caminhar pela cidade, gastei o resto do dinheiro em cerveja, não consegui encontrá-lo. Telefonei para todas as delegacias e hospitais, fui ao necrotério. Não estava. Voltei para casa todo molhado de chuva, tossindo e espirrando. Caí na cama e dormi.
Domingo:
Passei o dia na praça. Ele não apareceu. Levei os retratos comigo. Olhei-os, atentamente. São seis. O último parece um cadáver. Eles me olhavam com desprezo, os retratos. Levei a margarida. Fez calor o dia inteiro. Suei. Esqueci de fazer a barba. A tarde, a secretária passou com o namorado e me viu deitado na grama. Não me cumprimentou e cochichou qualquer coisa com o namorado. Quando já era muito tarde percebi que ele não viria. Nunca mais. Voltei devagar para casa, mas o porteiro não me deixou entrar. Mostrou-me uma circular feita pelas vizinhas dizendo coisas que não li. Vim para o bar onde estou escrevendo. Chove. Talvez ele tenha ido embora, talvez volte, talvez tenha morrido. Não sei. A minha cabeça estala. Eu não suporto mais. Espalhei os retratos em cima da mesa. Fiquei olhando. Despetalei devagar a margarida até não restar mais que o miolo granuloso. O sexto retrato é um cadáver. Acho que sei por que ele não veio. O barulho da chuva é o mesmo de seus passos esmagando folhas que não existiam.
Flor é abismo, repeti.
Flor e abismo. E de repente descobri que estou morto.

Caio Fernando Abreu 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Quando alguém te calunia
Ouve com serenidade
Imagina o que não seria
Se te dissessem a verdade



Mário Quintna

Silêncio

De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.



Donizete Galvão

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Agradecimento

devo muito 
aos que não amo

o alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outros

A alegria de não ser eu 
o lobo de suas ovelhas

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar

Não espero por eles
andando da janela à porta
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas

As viagens com eles são sempre um sucesso
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras

E quando nos separam
sete colinas e rios
são sete colinas e rios
bem conhecidos dos mapas

(...)

Wislawa Szymborska
Há três tipos de pessoas:
as que querem ser bonitas,
as que se aceitam feias,
e as belas.



Frederico Graniço

domingo, 26 de janeiro de 2014

Fotografia do 11 de Setembro

Pularam dos andares em chamas-
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles-
descrever este vôo
e não acrescentar o último verso



wislawa Szymborska 

Ausência

Por pouco
e a minha mãe teria casado
com o senhor Zbigniew B. de Zduńska Wola.
Se tivessem uma filha – não seria eu.
Talvez com a memória para nomes, rostos
e canções ouvidas uma só vez – melhor que a minha.
Distinguindo sem erro um pássaro do outro.
Com excelentes notas de física e química,
de polonês nem tanto,
mas escrevendo poemas às escondidas,
logo muito melhores que os meus.                        

Por pouco
e naquela mesma época meu pai teria casado
com a senhorita Jadwiga R. de Zakopane.
Se tivessem uma filha – não seria eu.
Talvez mais teimosa e intransigente.
Saltando sem medo na água funda.
Suscetível ao que comove as massas.
Vista em vários lugares ao mesmo tempo,
poucas vezes com um livro, muito mais com a bola,
jogando com meninos nos pátios e ruas.

As duas poderiam ter se encontrado
na mesma escola e na mesma classe,
mas sem afinidades,
nenhum parentesco,
e na foto da turma, bem afastadas entre si.

Fiquem aqui, meninas
– diz o fotógrafo –,
as pequenas na frente, as mais altas atrás.                 
E sorrisos bonitos quando eu der o sinal.           
Verifiquem ainda,
não falta ninguém?

– Sim, senhor, estamos todas aqui.

Wislawa Szymborska 
Eu, agora — que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?



Mário Quintana 

Possibilidades

Prefiro filmes.
Prefiro gatos.
Prefiro os carvalhos ao longo de Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievsky.
Prefiro-me gostando de indivíduos
a mim mesma amando a humanidade.
Prefiro manter uma agulha e linha à mão, em caso de precisão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não suster
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro falar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as antigas bem alinhadas ilustrações.
Prefiro o absurdo de escrever poemas
ao absurdo de não escrever poemas.
Prefiro, quando o amor diz respeito, aniversários inespecíficos
que podem ser comemorados todos os dias.
Prefiro moralistas
que me prometem nada.
Prefiro bondade astuta ao tipo super confiante.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro conquistados a países conquistadores.
Prefiro ter algumas reservas.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fadas dos Grimms às primeiras páginas dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.Prefiro cães com caudas descortadas.Prefiro os olhos claros, uma vez que os meus são escuros.Prefiro gavetas.Prefiro muitas coisas que não mencionei aquia muitas coisas que também deixei não ditas.Prefiro os zeros à soltaàqueles alinhados atrás de uma cifra.Prefiro o tempo de insetos ao tempo de estrelas.Prefiro bater na madeira.Prefiro não perguntar quanto tempo e quando.Eu prefiro manter em mente a possibilidadede que a existência tem sua própria razão de ser.


Wislawa Szymborska 



sábado, 25 de janeiro de 2014

Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer


Wislwa Szymborska

Fumaça

Nunca fumei, mesmo sendo esse o mais bonito dos vícios. Achava sexy antes de saber do sexo e de descobrir essa palavra entre os diálogos dos filmes americanos. 
Por onde anda aquele cigarro de menta antigo tragado no beco do bairro? Doeu entre a boca e o corpo todo. Tossi tanto e fundo, muito, até deixar minha rebeldia ridícula. Parei, acreditando ser possível ficar só com a parte indolor das coisas. Deixei passar a chance - em duas tragadas se perde muito mais que um cigarro. 
Mais tarde quando descobri o sexo e quis fazer do cigarro seu descanso, como os cafajestes deitados em motéis baratos e as mulheres consumidas em seu olhar de tédio de fim de noite, era tarde. Junto com o sal e o atropelamento, cigarro mata, talvez mais. Menos que as guerras.  
Em meus delírios de adolescente, respondia: "você tem fogo?" com isqueiro e um sorriso de dúvida. Mas já era tarde. Hoje, andando na rua, lamento que ninguém me peça um cigarro. Os fumantes se reconhecem.
Do que falam as conversas cobertas de fumaça, de segredo, que observo do outro lado, na mesa do bar? Um ponto vermelho no escuro movimenta as mãos, imagino a boca.    
O cigarro é o consumo do impossível, o silêncio queimando dentro da boca, subindo, saindo do peito, reencarnando na ponta de um isqueiro, já em outro cigarro que acende quando alguém passa. Ar branco, cinza contra luz, que percorre as madrugadas. Alguém fumando sentado na calçada é mais solitário que qualquer um, que todos nós juntos. Uma secura que ninguém se aproxima, não pelo cheiro amargo como outras coisas, mas para não interromper o que não poderia ser repetido em outro cigarro.
É fumaça que teria sido as palavras se não fossem escritas no papel. Tem a mesma cor das cartas queimadas antes de serem enviadas. Quando se escreve para ninguém lê e guarda na gaveta. A mesma textura da poeira presa na teia da aranha. Fumaça que vai subindo até o ponto de sumir, virar nuvem, um desenho que o vento leva.
Um dia, tentei fingi que fumava, acendi um cigarro como quem denuncia o próprio crime. As mãos que faziam força no equilíbrio entre os dedos entortavam o andar e a fumaça fugia para o outro lado, seguindo o vento.
Cigarro, um dedo torto gastando e renascendo a cada ano, sem nada de novo. Cicatriz branca pra fora das varandas do mundo.
Deixei de fumar por que nunca fumei. Foi assim que deixei também de ser mais sexy e americana. No pós sexo respiro fundo, buscando os amantes com mais cigarros no bolso, admirando esses que parecem dispostos a morrer pela beleza, por meus olhos.  


Fernanda Tatagiba

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

poesia: crítica da linguagem e da realidade, crítica do tempo. A subversão do sentido produz uma reversão do tempo: o instante do haiku é incomensurável (...) é algo mais do que uma obra literária é um convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia. Duas realidades unidas, inseparáveis e que não obstante, jamais se fundem por inteiro

A poesia de Matsúo Bashõ, Octávio Paz no livro Signos de Rotação 


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

o poema é um conjunto de signos que procuram o seu significado e que não significam outra coisa além dessa procura 


Octávio Paz, Signos de Rotação 

Minas

Se eu encostasse

meu ouvido

no seu peito

ouviria o tumulto

do mar

o alarido estridente

dos banhistas

cegos de sol

o baque

das ondas

quando despencam

na praia


Vem

escuta

no meu peito

o silêncio

elementar

dos metais



Ana Martins Marques 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Semana que vem, chega-te pelo correio
a lua: puro papelão,
que aos teus dedos transmutará em loiça.

Não fosse a gripe que me assolou esses dias,
não fosse a preguiça, os livros e o sono,
eu te mataria um dragão.

Na entrada da tua vila, deixaria o bicho,
pesado como uma hecatombe
(um hematoma na boca do estômago,

as asas imensas de bomba
imersas numa poça de sangue verde).
Ora, não te assustes,

sei que te acostumei com presentes mais delicados.
Mas não seria preciso guardá-lo: telefonarias
para o Departamento de Limpeza Urbana

avisando que um louco que te ama
deixou um sonho morto
na porta da tua casa.



O Dragão

 Eucanaã Ferraz
 Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

Autonomia

Wislawa Szymborska




 vídeo: O que podem os afetos?
 Viviane Mosé e Nelson Lucero

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

mas continuo aquele
de quem se esconde

remédio
faca
dinheiro

a quem a criança
nega a mão
e os amores giram
em torno de uma só cadeira

Sérgio Mello

Solidão

A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

Foto de um ano

finalmente vejo seus olhos
de jabuticaba verde

menina dourada
do meu olhar
colorido de futuro

você, assim como quem não vê nada
já sabe de mim

o que posso te oferecer senão a mim mesmo
agora
te olhando?

contorço em beleza e assombro

acendem as luzes do parque
ainda hoje minha maior tristeza é o algodão doce
indo embora
e a viagem mais longa é a do balanço do balanço

depois de mais de vinte anos,
mais de vinte noites
sou forte
e te seguro em minhas mãos

seus olhos negros
que foram gastando
com os meus castanhos
caminhando
cumprindo nosso mistério

sou agora meu próprio retrato
daqui a vinte anos


Fernanda Tatagiba

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia



Manoel de Barros 
Todos os dias
meto a cabeça
na boca
do crocodilo

O meu feito é feito
de paciência

Já meti
a cabeça
no forno
estava farta
dos crocodilos
e dos amantes

Não tenho tido amantes
tenho tido crocodilos

Com os crocodilos
ganho o pão
e as rosas

Morrer é um truque
como tudo o mais

Dobrada
entre os crocodilos
dobrados
arrisco a pele

A pele é a alma.


Adília Lopes

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Retornos

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe – mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.



SZYMBORSKA, Wisława. 
Poemas. Tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011


faz frio nesses campos floridos 
atrás da saliva
em frente ao oásis

de frio nasce gente, morre ventania
frio na carne, através de paredes brancas

frio no ardor de não cobrir

frio nas estações ao contrário 
no outro lado do mundo

frio de febre, neve, água 
friagem entre os dedos 
cobertores extensos, aviso de mãe, previsão do tempo
arrepio na pele, chocolate quente
alguém distante ou bem perto 

frio no frio 

frio por dentro meu suor espelha 


Frágil frio; 2008
imagem: Carlitos
poema: Fernanda Tatagiba