sábado, 8 de fevereiro de 2014

A Vida Bate

Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
         o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
     Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
                                       Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
        que é mais que a água na grama
        que o banho no mar, que o beijo
        na boca, mais
        que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
         te acham e te perdem.
         Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
                                                               ó desatino
ó verdade, ó fome
                             de vida! 
        O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
        E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
        A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
       como se estivesse pronta.
       Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
       Mas vista
       de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
      carnadura de pânico: as
      pessoas que vão e vêm
      que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
      sangue urbano
      movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
       e estão cheias de vozes
       e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
       Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
       escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
         E passamos
carregados de flores sufocadas.
         Mas, dentro, no coração,
         eu sei,
                   a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
        Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
        sob as penas da lei,
        em teu pulso,
                              a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
         que me sustenta
         esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
         na América Latina.

Ferreira Gullar 

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