sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico.

Processos de Traição 



(...) episódio paradigmático do momento de encontro dos interesses do corpo e da alma: saída dos hebreus do Egito. Por tratar-se de um símbolo de movimento ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, esses acontecimentos em muito se presta para exemplificar os processos humanos que realizam movimentos semelhantes.
   É fundamental mencionar que Egito é, acima de tudo, um símbolo, por representar um lugar que “já foi bom” e deixou de ser. As analogias se tornam mais interessantes ainda se reconhecermos que a etimologia hebraica da palavra Egito – mitsraim – quer dizer “lugar estreito”.
   Todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinados momentos. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apenados e limitadores.
   No processo de saída de um lugar estreito, temos uma descrição interessante dos fatos históricos ocorridos no relato bíblico. Segundo o mesmo, o processo de saída esbarra num limite tão real e profundo como o mar. Entre o exército mais poderoso do mundo de então e o mar, os hebreus se voltam ao líder Moisés em desespero. O que fazer?
   Quando resolvemos sair do lugar estreito, ocorre um processo semelhante com o corpo. O corpo não gosta de sair, de mudar. São a estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe outra saída. Mas para onde ir se o corpo não conhece nada diferente de si mesmo? A alma, imoral em sua proposta de desalojamento do corpo, impõe uma caminhada que para o corpo acaba por ser um enfrentamento com uma barreira aparentemente intransponível. Como seguir rumo à “terra prometida”, ao futuro, se entre o presente e ela existe um fosso, um mar, absoluto. O corpo então questiona a sensatez da alma. Os portões do passado se fecham, os do futuro não estão abertos e o corpo experimenta a mais temida das sensações – o pânico de se extinguir.
   Encurralados diante do mar, o povo, representativo do corpo, assume algumas posturas possíveis. De acordo com o ensinamento chassídico, existem quatro comportamentos clássicos mencionados como quatro acampamentos. O primeiro quer voltar, o segundo quer lutar, o terceiro quer jogar-se ao mar, o quarto se mobiliza em oração.
   Como leituras da alma, essas quatro posturas representam resistências do corpo. A própria ideia de acampar é, em si, uma forma de “empacar”. Aquele que propõe o retorno reconhece o poder do lugar estreito. Esse lugar do hábito é tão poderoso que foi uma ilusão se deixar levar pelo sonho de sair. Tudo estava errado desde o início e a proposta de voltar pressupõe uma vida estreita e em conformidade com a realidade e as limitações que esta impõe.
   Lutar, por sua vez, é a crença de que se poderá fazer do próprio lugar estreito um lugar mais amplo. Se o lugar estreito é poderoso para impor-se como realidade, o que resta é desafiá-lo, como se a estreiteza fosse externa e não um processo de relação entre o mundo externo e o interno. Jamais devemos esquecer que o lugar estreito um dia não o foi.
   Jogar-se ao mar é a atitude do desespero. É a entrega do corpo na descoberta de que a alma propiciou um limbo insuportável em que não há mais o passado que o definia nem lhe é permitido um novo futuro que o redefina. Na busca de um novo “bom”, não se encontra um novo “correto” e a única saída é pagar o preço de não se bancado o “correto” do passado mesmo que o “bom” fosse inadequado. Desse desespero surge a resignação de que, apesar de não se voltar ao lugar estreito, jamais se poderá atingir um novo lugar amplo.
   Orar é um recurso de fazer da situação do “novo” uma reprodução do lugar estreito. Numa aparente resolução das demandas da alma, o corpo exige que a realidade seja “compassiva” com ele, permitindo que o novo lugar não exija dele uma nova definição de si. O novo lugar é o velho sem parecer-lhe estreito. Muitos de nossos sonhos do pós-vida se classificam nessa categoria. 
   A beleza da interpretação chassídica está na utilização do versículo (Ex. 14:13), que esboça a reação de Moisés, o líder e representante dos interesses da alma (o empreendedor da saída do lugar estreito): “ E disse Moisés ao povo: (1) Não temais, ficai e vede a salvação do Eterno; (2) porque os egípcios que vedes hoje não volvereis a vê-los nunca mais; (3) o Eterno lutará por vós e (4) vós vos calareis.”
   Segundo essas interpretação, temos aqui uma resposta aos quatro acampamentos. Aos que queriam se jogar no mar: “Não temais, ficai.” Aos que desejam voltar: “Não volvereis a vê-los nunca mais.” Aos que se propunham a lutar: “ O Eterno lutará por vós.” E aos que oram: “Vós vos calareis.” Nenhum dos acampamentos representa o futuro e a saída. Todos eles são variações sobre a hesitação e a vacilação. São, na realidade, a fronteira onde um corpo morre para renascer com uma mesma alma em outro corpo-do outro lado da margem.
   Mas, se nenhuma desses condutas é apropriada, qual é o caminho então? Não nos esqueçamos da realidade que interpõe um mar entre um corpo e outro. A resposta de Deus às vacilações do corpo, ou seja, resposta proveniente da fonte de toda alma e todo futuro, é igualmente decisiva e intrigante (ex. 14:15): “Diga a Israel que marche”.
   Marchar, dar andamento, a quê? Para onde? Que solução óbvia é essa que divindade apresenta, pela qual nenhum acampamento, ou nenhuma perspectiva do corpo, consegue dar conta de uma saída?
    Conhecemos o final do relato bíblico em que o mar se abre. Mas, para o Midrash- comentários alegóricos dos rabinos-, a abertura do mar se dá de uma maneira muito peculiar. Um homem chamado Nachshon bem Aminadav, que não sabia nadar, começou a adentrar as águas. Estas, no entanto, não se abriram num primeiro instante. Somente quando homem já estava com a água no nível do nariz, as águas se abriram.
   Diferente do acampamento, que queria se jogar ao mar como forma de desesperança no futuro, Nachshon compreende a recomendação de Deus: “marchem.” O futuro existe se vocês marcharem. O futuro, porém, não está ligado ao presente pelo corpo a outro ou de uma margem a outra. Saber abrir mão desse corpo na fé de que outro se constituirá é saber dar o passo que leva até onde “não dá mais pé”. Enquanto der pé, estaremos estacionados em acampamentos.
   Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.
   Conhecemos esse processo através de nosso nascimento. Em determinado momento, o lugar mais maravilhoso, aconchegante e repleto de nutrientes para o corpo se desenvolver se torna estreito. O útero materno deixa de ser amplo e se transforma em um mitsraim (Egito). A saída pelas águas a seco é difícil e pressupõe uma coragem que só se torna possível se alma e corpo andam de mãos dadas. Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico.
   Vindos da outra margem, extasiados, constatamos a existência da alma para além da anatomia do corpo. O passado se fez um novo presente, um futuro conquistado. 
   Na outra margem, por algum tempo o corpo irá se esquecer de que nenhum lugar poderá ser amplo para sempre. A estreiteza é uma condição da vida para qual a alma imoral é um mecanismo tão inato quanto o corpo moral reprodutivo. O Éden ficou estreito e espécie humana deparou, como ocorre de era em era, com a estreiteza de seu ser e de sua natureza. Passar por um processo de mutação de maneira bem-sucedida é irromper em um outro corpo que não se sabia que poderia conter nosso “eu”.  


Quando Trair


 O poeta e filósofo Sh’lomo Gabirol menciona quatro estágios distintos no reconhecimento da estreiteza de um lugar. Há os que: 1) sabem e sabem que sabem; 2) sabem, mas não sabem que sabem; 3) não sabem e sequer sabem que não sabem e 4) não sabem, mas presumem que sabem.
   O primeiro está no estágio dos acampados diante do mar. Espera por sua chance de atravessar. Reconhece o novo “bom” e permanece à espera de um novo “correto! Que melhor se adapte a ele. O segundo deve ser despertado. O lugar é estreito e ele assim o percebe, mas a possibilidade de empreender uma caminhada rumo ao futuro lhe escapa. O presente, avalizado pelo passado, e demasiadamente forte para que se enxergue além. Nessa condição, não será possível ao corpo se sentir encurralado... e marchar.
   O terceiro não reconhece a estreiteza mesmo quando esta já se instalou. Necessita com urgência de terapia para dar conta da sensação de angústia que se origina em não saber o que há de tão inadequado em sua maneira de perceber sua corpo.
   Já o quarto também não reconhece a estreiteza, apesar de possuir um discurso que a desafia. A estreiteza, apesar de possuir um discurso que a desafia. A estreiteza, no entanto, é uma figura de abstração, o que não significa que um indivíduo compreenda de fato as diversas escravidões a que está submetido. Não há dúvida, esta é a situação que oferece maior dificuldade. A “amplidão do pensamento teórico desse indivíduo cria a ilusão de que está à margem do mar. Mas, por nunca ter realmente percebido a estreiteza, não terá como passar no meio do mar. O seco não se fará disponível em nenhum momento, pois não existe condição de “marchar” para quem realmente não se percebe em estreiteza. Nenhum corpo abrirá mão de seus interesses para a alma sem que esteja profundamente consciente de seu desconforto. Este caso fala de novo “correto”, mas não conseguiu formular nenhum novo “bom” para o mesmo. Em um novo “correto” sem um novo “bom” em vista significa aumentar a confusão e a perplexidade. Mesmo o retorno ao estágio em que se percebia “ não sabendo e sequer sabendo que não sabe” lhe será muito custoso.

   Quando o corpo está exposto à estreiteza, e quando está consciente de que seu desconforto provém dela, surge então a possibilidade de acampar em frente ao mar. A partir desse lugar de impropriedade e angústia, olharmos o horizonte. Chegar até ele não mais será um processo do corpo, mas da alma. Há uma entrega, um despojamento nessa margem, que não só desnuda o corpo, mas também o modifica. Essa metamorfose nos assusta com a possibilidade de estarmos abrindo mão de nossa integridade e identidade. (p.52)


trecho do livro A  Alma Imoral de Nilton Bonder



Nenhum comentário:

Postar um comentário