sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Mal Amadas

acompanhando João Cabral de Melo Neto que escreveu Os três Mal Amados (link) para dar voz ao personagens masculinos do poema Quadrilha (link) do Drummond, escrevi, dialogando com o texto do João Cabral, falas dos personagens femininos: 



Maria:

Joaquim andava lento, seus braços atravessavam seu corpo como uma gangorra enferrujada. Eu, acompanhando seus passos, mergulhava no abismo formado entre suas pernas que como um alicate cortava o chão da cidade.
Joaquim tinha um olhar de quem ficou perdido no parque, esperando alguém chegar durante tanto tempo que se esqueceu disso. Eu imaginava seu sorriso que sumiu entre dentes sem fome, devorado pela sua própria boca. Quis deixar a gravidade gastar todas suas lágrimas e entupi o dilúvio. E no fim, sem corpo, renascer como um mato depois da chuva.
Joaquim, ainda tenho o brilho das estrelas que deixaram de existir antes da gente nascer. Estrelas que vejo deitada, antes que o sono as mate, na minha cama, por instantes de vento e cortina descoberta.
Joaquim percorri o relevo de sua cicatriz, afundei minha pele, me moldando no seu corpo, fazendo um desenho. A rasura, a sombra do encaixe, esse sulco preenche os dias que faltam.
Um dia o escritor me disse que escreveria nossa história, ele salvaria sua dor. Com a força de um estrábico entortaria o destino. Eu leria uma palavra por dia, e não chegaria nunca ao fim, mesmo que ele fosse como um desses finais de filmes românticos.
Joaquim, desespero é a falta de espera. É flutuar sem fantasia, é não acreditar em Deus, mesmo depois da morte.
Joaquim minha vontade era te levar, como uma bailarina, como o vento de cidade pequena, ir dobrando, irrigando de sangue sua carne, uma mola em cada osso, teríamos juntos duas assas, e não teríamos outra forma de voltar senão indo mais longe.



Lili

Sou como uma formiga que acerta seu caminho. Não sei ir além do encontro pronto, minha única busca é continuar. Nada além dessa linha, dos sentidos já revelados nas roupas com seus botões bem costurados. Todas nos cabides, em fila, esperando seus corpos.
Os apaixonados e seus mundos de lágrima e agonia. Leio seus romances, e depois, guardo na estante limpas.
Sigo sem risco pelas ruas com seus números, nomes com seus potes, Me encaixo como uma caixa que em cima de outra caixa, formando pilhas altas. E assim, o peso de mais uma vai me tornando imóvel e fixa. Meu equilibro.
Que encanto maior eu poderia esperar além da beleza da ordem alfabética. A certeza de não encontrar o H antes do D. Sou acesa de certeza, pronta para relógio na mesa me apontando, levando os dias, a cada hora.  
Vejo todos a espera, procurando. O que teria além de minha casa arrumada, vizinhos que já sei o nome, cercas pintadas. A emoção do sol brotando, como ontem, como será. Minha raiz esta pronta, forte e grossa. Minha glória é física e diária.
Meu futuro já sabe meu nome, mais delicado que meu corpo. Esta escrito antes do casal riscar seus nomes na pedra, meu futuro vem sempre depois da chuva, como um dado certo, não precisa de previsão. Todos sabem a hora, o momento eu estarei lá como estou.



Teresa:

Raimundo era a minha vontade de flutuar, de respirar calma como quem conta areia da ampulheta. Eu buscava a magia na repetição, alguma coisa perdida entre a troca de sol dos dias. Era poesia que via em suas marcações no papel, na sua contagem de pássaros. Queria ele numerasse minha confusão, como um mágico, um Deus.
Raimundo me deixava maior. Seu nome enchia minha boca como um pão seco. Foi em sua certeza em que eu, uma menina insistindo para ter vontade, me larguei. Queria que me levasse e inundasse de seu mundo. Mesmo do outro lado, me pendurasse como um enfeite eterno.
Raimundo era homem cheio de pelos nos braços, que levantava o peso das coisas maiores que seu formato. Mas meu sonho era por seu corpo cansado em meu ombro de pouca carne. O peso que movia os braços, um balanço na direção do encontro, era a força que me lembrava de mim. 
Teu mar sem malícia ia até meus pés, só me molhava os dedos, me deixando saber do gosto, mas levando minha vontade para longe. Seu olhar que não me via não condenava dos pecados. Sobrevivo do silêncio entre as palavras, das sobras dos poemas.
Raimundo, não depositarei minha grande falta, um oceano de dor, em almas tão curvadas como a minha. Só posso esperar outra vida, uma passagem mágica que leve em sonho. Algo que faça uma cisão infinita, uma dobra no tempo até sua mão.
Raimundo, escolhemos todos nossos amores, mas o primeiro é um designo divido, é nossa fé em tudo. Depois, a maioria, como pálidos sobreviventes vão reconhecendo outros desgarrados. Eu arrasto minha dor em procissões solitárias.




Fernanda Tatagiba


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