sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Uma pessoa boa tem bons defeitos e uma pessoa má más virtudes.
aristóteles
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo.
Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele equilíbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível.
O tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores(..)`

Trecho de Lavoura Arcaica – Raduan Nassar
Além disso quero-te, e faz tempo e frio.
Julio Cortázar

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Eu te imolei uma preciosa vítima humana,
um jovem e um velho.
Eu esfolei minha pele com facas.
Eu aspergi teu altar com meu próprio sangue.
Expulsei pai e mãe, para que tu pudesses morar comigo.
Fiz de minha noite dia e andei por volta do meio-dia como um sonâmbulo.
Derrubei todos os deuses, infringi as leis, comi o que era impuro.
Joguei de lado minha espada e vesti roupas efeminadas.
Arrebentei meu castelo fortificado e brinquei na areia como criança.
Vi os guerreiros indo para a batalha e quebrei minha armadura com o martelo.
Eu plantei meu campo e deixei as frutas apodrecerem.
Tornei pequeno o grande e todo o pequeno, grande.
Troquei meus objetivos mais distantes pelo que havia de mais próximo,
portanto estou pronto."
As Encantações, Liber Secundus, O Livro Vermelho (LIber Novus), Carl Gustav Jung - Tradução de Edgar Orth

sábado, 10 de janeiro de 2015

sombra
um tombo contra a luzpoço fora do fundo
do chão 
seu formato de dança
dentro das montanhas
não sobra, nem some
nunca está só

desenha no muro
dorme no alto
sem som
a sombra 

Fernanda Tatagiba

Afivelar bem os Cintos

o homem com a mochila a jato
que para de funcionar e cai
visto de cima;

a decolagem do avião;
o salto do paraquedas
que suga para cima
ao se abrir no ar
dando um impulso
impossível aos pés;

o mergulho na água
e a permanência prolongada
sentado no fundo da piscina;

a queda livre ao levantar da cama
ou descer de qualquer superfície,
de um trampolin
como nos desenhos
em que o circense pula
de uma altura que faz ver tudo pequeno
em uma bacia d'água minúscula
quase um balde
profundo o bastante para
fazer o corpo sumir
sem deixar rastro;

a subida do astronauta
dentro do foguete
e o momento que atinge
a gravidade zero
fazendo as vísceras
voltarem para o lugar;

a suspensão do pescoço
na corda
depois dos pés abandonarem
o banco que os sustenta;

a densidade da aterrissagem
que num toque
colide o oco com o cheio
e não os funde
apenas relembra ou revela
suas naturezas.

a imagem é pobre
ainda não é o vazio.



Vinícius Varela 
mesmo sussurrado ao pé do ouvido, qualquer "eu te amo" é como uma sirene repercutindo numa aldeia consumida pelo fogo.

Maiakovski!

domingo, 4 de janeiro de 2015

Mar Alto

Esta água é todas as águas,
sem porto, nome ou naufrágio.
Rendada de espuma ao vento,
sem dor nem contentamento.

Esta água — lugar nenhum —
é perdição sem loucura.
Nela se dissolvem mágoa,
memória, tempo, aventura.

Sem lei nem rei, sem fronteiras,
além de verbo e silêncio,
esta é a pátria procurada:
incêndio de tudo — nada´
Hélio Pellegrino a.a