domingo, 29 de dezembro de 2013



 asfalto 
céu plano
deslisando
a pressa
cinza
  por onde 
escapa
  o homem 


poema e fotografia: Fernanda Tatagiba

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Mal Amadas

acompanhando João Cabral de Melo Neto que escreveu Os três Mal Amados (link) para dar voz ao personagens masculinos do poema Quadrilha (link) do Drummond, escrevi, dialogando com o texto do João Cabral, falas dos personagens femininos: 



Maria:

Joaquim andava lento, seus braços atravessavam seu corpo como uma gangorra enferrujada. Eu, acompanhando seus passos, mergulhava no abismo formado entre suas pernas que como um alicate cortava o chão da cidade.
Joaquim tinha um olhar de quem ficou perdido no parque, esperando alguém chegar durante tanto tempo que se esqueceu disso. Eu imaginava seu sorriso que sumiu entre dentes sem fome, devorado pela sua própria boca. Quis deixar a gravidade gastar todas suas lágrimas e entupi o dilúvio. E no fim, sem corpo, renascer como um mato depois da chuva.
Joaquim, ainda tenho o brilho das estrelas que deixaram de existir antes da gente nascer. Estrelas que vejo deitada, antes que o sono as mate, na minha cama, por instantes de vento e cortina descoberta.
Joaquim percorri o relevo de sua cicatriz, afundei minha pele, me moldando no seu corpo, fazendo um desenho. A rasura, a sombra do encaixe, esse sulco preenche os dias que faltam.
Um dia o escritor me disse que escreveria nossa história, ele salvaria sua dor. Com a força de um estrábico entortaria o destino. Eu leria uma palavra por dia, e não chegaria nunca ao fim, mesmo que ele fosse como um desses finais de filmes românticos.
Joaquim, desespero é a falta de espera. É flutuar sem fantasia, é não acreditar em Deus, mesmo depois da morte.
Joaquim minha vontade era te levar, como uma bailarina, como o vento de cidade pequena, ir dobrando, irrigando de sangue sua carne, uma mola em cada osso, teríamos juntos duas assas, e não teríamos outra forma de voltar senão indo mais longe.



Lili

Sou como uma formiga que acerta seu caminho. Não sei ir além do encontro pronto, minha única busca é continuar. Nada além dessa linha, dos sentidos já revelados nas roupas com seus botões bem costurados. Todas nos cabides, em fila, esperando seus corpos.
Os apaixonados e seus mundos de lágrima e agonia. Leio seus romances, e depois, guardo na estante limpas.
Sigo sem risco pelas ruas com seus números, nomes com seus potes, Me encaixo como uma caixa que em cima de outra caixa, formando pilhas altas. E assim, o peso de mais uma vai me tornando imóvel e fixa. Meu equilibro.
Que encanto maior eu poderia esperar além da beleza da ordem alfabética. A certeza de não encontrar o H antes do D. Sou acesa de certeza, pronta para relógio na mesa me apontando, levando os dias, a cada hora.  
Vejo todos a espera, procurando. O que teria além de minha casa arrumada, vizinhos que já sei o nome, cercas pintadas. A emoção do sol brotando, como ontem, como será. Minha raiz esta pronta, forte e grossa. Minha glória é física e diária.
Meu futuro já sabe meu nome, mais delicado que meu corpo. Esta escrito antes do casal riscar seus nomes na pedra, meu futuro vem sempre depois da chuva, como um dado certo, não precisa de previsão. Todos sabem a hora, o momento eu estarei lá como estou.



Teresa:

Raimundo era a minha vontade de flutuar, de respirar calma como quem conta areia da ampulheta. Eu buscava a magia na repetição, alguma coisa perdida entre a troca de sol dos dias. Era poesia que via em suas marcações no papel, na sua contagem de pássaros. Queria ele numerasse minha confusão, como um mágico, um Deus.
Raimundo me deixava maior. Seu nome enchia minha boca como um pão seco. Foi em sua certeza em que eu, uma menina insistindo para ter vontade, me larguei. Queria que me levasse e inundasse de seu mundo. Mesmo do outro lado, me pendurasse como um enfeite eterno.
Raimundo era homem cheio de pelos nos braços, que levantava o peso das coisas maiores que seu formato. Mas meu sonho era por seu corpo cansado em meu ombro de pouca carne. O peso que movia os braços, um balanço na direção do encontro, era a força que me lembrava de mim. 
Teu mar sem malícia ia até meus pés, só me molhava os dedos, me deixando saber do gosto, mas levando minha vontade para longe. Seu olhar que não me via não condenava dos pecados. Sobrevivo do silêncio entre as palavras, das sobras dos poemas.
Raimundo, não depositarei minha grande falta, um oceano de dor, em almas tão curvadas como a minha. Só posso esperar outra vida, uma passagem mágica que leve em sonho. Algo que faça uma cisão infinita, uma dobra no tempo até sua mão.
Raimundo, escolhemos todos nossos amores, mas o primeiro é um designo divido, é nossa fé em tudo. Depois, a maioria, como pálidos sobreviventes vão reconhecendo outros desgarrados. Eu arrasto minha dor em procissões solitárias.




Fernanda Tatagiba


é preciso pelo menos duas pessoas para construir uma vida e apenas uma para morrer


william faulkner

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

as escápulas das costas 
- asas viradas

pra dentro
capa 
de um corpo magro
movimentam 
como um osso 
quebrado

uma parte
sobra 
do esqueleto
abrigo 
dos olhos



Fernanda Tatagiba
Quando a lua brilha branca 
e o rio faz aquele som 
de chama de fogão a gás -
aquele chiado que lembra
cem pessoas cochichando 
(...)

Elizabeth Bishop 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

7 bilhões pessoas no planeta
talvez alguma seja
a que ainda 
não chegou

não conhecerei muitas
que já vi 
amarei poucas 
que não terei

também não sabem de mim
nem se eu contasse

7 bilhões e não basta 
só nascer 


Fernanda Tatagiba

sábado, 14 de dezembro de 2013

Canção


O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação 

o peso
o peso que carregamos
é o amor. 

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano - 

sai para fora do coração
ardendo de pureza - 

pois o fardo da vida
é o amor, 

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor. 

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contigo
quando negado: 

o peso é demasiado
- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso. 

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho - 

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.



Allen Ginsberg

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico.

Processos de Traição 



(...) episódio paradigmático do momento de encontro dos interesses do corpo e da alma: saída dos hebreus do Egito. Por tratar-se de um símbolo de movimento ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, esses acontecimentos em muito se presta para exemplificar os processos humanos que realizam movimentos semelhantes.
   É fundamental mencionar que Egito é, acima de tudo, um símbolo, por representar um lugar que “já foi bom” e deixou de ser. As analogias se tornam mais interessantes ainda se reconhecermos que a etimologia hebraica da palavra Egito – mitsraim – quer dizer “lugar estreito”.
   Todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinados momentos. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apenados e limitadores.
   No processo de saída de um lugar estreito, temos uma descrição interessante dos fatos históricos ocorridos no relato bíblico. Segundo o mesmo, o processo de saída esbarra num limite tão real e profundo como o mar. Entre o exército mais poderoso do mundo de então e o mar, os hebreus se voltam ao líder Moisés em desespero. O que fazer?
   Quando resolvemos sair do lugar estreito, ocorre um processo semelhante com o corpo. O corpo não gosta de sair, de mudar. São a estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe outra saída. Mas para onde ir se o corpo não conhece nada diferente de si mesmo? A alma, imoral em sua proposta de desalojamento do corpo, impõe uma caminhada que para o corpo acaba por ser um enfrentamento com uma barreira aparentemente intransponível. Como seguir rumo à “terra prometida”, ao futuro, se entre o presente e ela existe um fosso, um mar, absoluto. O corpo então questiona a sensatez da alma. Os portões do passado se fecham, os do futuro não estão abertos e o corpo experimenta a mais temida das sensações – o pânico de se extinguir.
   Encurralados diante do mar, o povo, representativo do corpo, assume algumas posturas possíveis. De acordo com o ensinamento chassídico, existem quatro comportamentos clássicos mencionados como quatro acampamentos. O primeiro quer voltar, o segundo quer lutar, o terceiro quer jogar-se ao mar, o quarto se mobiliza em oração.
   Como leituras da alma, essas quatro posturas representam resistências do corpo. A própria ideia de acampar é, em si, uma forma de “empacar”. Aquele que propõe o retorno reconhece o poder do lugar estreito. Esse lugar do hábito é tão poderoso que foi uma ilusão se deixar levar pelo sonho de sair. Tudo estava errado desde o início e a proposta de voltar pressupõe uma vida estreita e em conformidade com a realidade e as limitações que esta impõe.
   Lutar, por sua vez, é a crença de que se poderá fazer do próprio lugar estreito um lugar mais amplo. Se o lugar estreito é poderoso para impor-se como realidade, o que resta é desafiá-lo, como se a estreiteza fosse externa e não um processo de relação entre o mundo externo e o interno. Jamais devemos esquecer que o lugar estreito um dia não o foi.
   Jogar-se ao mar é a atitude do desespero. É a entrega do corpo na descoberta de que a alma propiciou um limbo insuportável em que não há mais o passado que o definia nem lhe é permitido um novo futuro que o redefina. Na busca de um novo “bom”, não se encontra um novo “correto” e a única saída é pagar o preço de não se bancado o “correto” do passado mesmo que o “bom” fosse inadequado. Desse desespero surge a resignação de que, apesar de não se voltar ao lugar estreito, jamais se poderá atingir um novo lugar amplo.
   Orar é um recurso de fazer da situação do “novo” uma reprodução do lugar estreito. Numa aparente resolução das demandas da alma, o corpo exige que a realidade seja “compassiva” com ele, permitindo que o novo lugar não exija dele uma nova definição de si. O novo lugar é o velho sem parecer-lhe estreito. Muitos de nossos sonhos do pós-vida se classificam nessa categoria. 
   A beleza da interpretação chassídica está na utilização do versículo (Ex. 14:13), que esboça a reação de Moisés, o líder e representante dos interesses da alma (o empreendedor da saída do lugar estreito): “ E disse Moisés ao povo: (1) Não temais, ficai e vede a salvação do Eterno; (2) porque os egípcios que vedes hoje não volvereis a vê-los nunca mais; (3) o Eterno lutará por vós e (4) vós vos calareis.”
   Segundo essas interpretação, temos aqui uma resposta aos quatro acampamentos. Aos que queriam se jogar no mar: “Não temais, ficai.” Aos que desejam voltar: “Não volvereis a vê-los nunca mais.” Aos que se propunham a lutar: “ O Eterno lutará por vós.” E aos que oram: “Vós vos calareis.” Nenhum dos acampamentos representa o futuro e a saída. Todos eles são variações sobre a hesitação e a vacilação. São, na realidade, a fronteira onde um corpo morre para renascer com uma mesma alma em outro corpo-do outro lado da margem.
   Mas, se nenhuma desses condutas é apropriada, qual é o caminho então? Não nos esqueçamos da realidade que interpõe um mar entre um corpo e outro. A resposta de Deus às vacilações do corpo, ou seja, resposta proveniente da fonte de toda alma e todo futuro, é igualmente decisiva e intrigante (ex. 14:15): “Diga a Israel que marche”.
   Marchar, dar andamento, a quê? Para onde? Que solução óbvia é essa que divindade apresenta, pela qual nenhum acampamento, ou nenhuma perspectiva do corpo, consegue dar conta de uma saída?
    Conhecemos o final do relato bíblico em que o mar se abre. Mas, para o Midrash- comentários alegóricos dos rabinos-, a abertura do mar se dá de uma maneira muito peculiar. Um homem chamado Nachshon bem Aminadav, que não sabia nadar, começou a adentrar as águas. Estas, no entanto, não se abriram num primeiro instante. Somente quando homem já estava com a água no nível do nariz, as águas se abriram.
   Diferente do acampamento, que queria se jogar ao mar como forma de desesperança no futuro, Nachshon compreende a recomendação de Deus: “marchem.” O futuro existe se vocês marcharem. O futuro, porém, não está ligado ao presente pelo corpo a outro ou de uma margem a outra. Saber abrir mão desse corpo na fé de que outro se constituirá é saber dar o passo que leva até onde “não dá mais pé”. Enquanto der pé, estaremos estacionados em acampamentos.
   Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.
   Conhecemos esse processo através de nosso nascimento. Em determinado momento, o lugar mais maravilhoso, aconchegante e repleto de nutrientes para o corpo se desenvolver se torna estreito. O útero materno deixa de ser amplo e se transforma em um mitsraim (Egito). A saída pelas águas a seco é difícil e pressupõe uma coragem que só se torna possível se alma e corpo andam de mãos dadas. Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico.
   Vindos da outra margem, extasiados, constatamos a existência da alma para além da anatomia do corpo. O passado se fez um novo presente, um futuro conquistado. 
   Na outra margem, por algum tempo o corpo irá se esquecer de que nenhum lugar poderá ser amplo para sempre. A estreiteza é uma condição da vida para qual a alma imoral é um mecanismo tão inato quanto o corpo moral reprodutivo. O Éden ficou estreito e espécie humana deparou, como ocorre de era em era, com a estreiteza de seu ser e de sua natureza. Passar por um processo de mutação de maneira bem-sucedida é irromper em um outro corpo que não se sabia que poderia conter nosso “eu”.  


Quando Trair


 O poeta e filósofo Sh’lomo Gabirol menciona quatro estágios distintos no reconhecimento da estreiteza de um lugar. Há os que: 1) sabem e sabem que sabem; 2) sabem, mas não sabem que sabem; 3) não sabem e sequer sabem que não sabem e 4) não sabem, mas presumem que sabem.
   O primeiro está no estágio dos acampados diante do mar. Espera por sua chance de atravessar. Reconhece o novo “bom” e permanece à espera de um novo “correto! Que melhor se adapte a ele. O segundo deve ser despertado. O lugar é estreito e ele assim o percebe, mas a possibilidade de empreender uma caminhada rumo ao futuro lhe escapa. O presente, avalizado pelo passado, e demasiadamente forte para que se enxergue além. Nessa condição, não será possível ao corpo se sentir encurralado... e marchar.
   O terceiro não reconhece a estreiteza mesmo quando esta já se instalou. Necessita com urgência de terapia para dar conta da sensação de angústia que se origina em não saber o que há de tão inadequado em sua maneira de perceber sua corpo.
   Já o quarto também não reconhece a estreiteza, apesar de possuir um discurso que a desafia. A estreiteza, apesar de possuir um discurso que a desafia. A estreiteza, no entanto, é uma figura de abstração, o que não significa que um indivíduo compreenda de fato as diversas escravidões a que está submetido. Não há dúvida, esta é a situação que oferece maior dificuldade. A “amplidão do pensamento teórico desse indivíduo cria a ilusão de que está à margem do mar. Mas, por nunca ter realmente percebido a estreiteza, não terá como passar no meio do mar. O seco não se fará disponível em nenhum momento, pois não existe condição de “marchar” para quem realmente não se percebe em estreiteza. Nenhum corpo abrirá mão de seus interesses para a alma sem que esteja profundamente consciente de seu desconforto. Este caso fala de novo “correto”, mas não conseguiu formular nenhum novo “bom” para o mesmo. Em um novo “correto” sem um novo “bom” em vista significa aumentar a confusão e a perplexidade. Mesmo o retorno ao estágio em que se percebia “ não sabendo e sequer sabendo que não sabe” lhe será muito custoso.

   Quando o corpo está exposto à estreiteza, e quando está consciente de que seu desconforto provém dela, surge então a possibilidade de acampar em frente ao mar. A partir desse lugar de impropriedade e angústia, olharmos o horizonte. Chegar até ele não mais será um processo do corpo, mas da alma. Há uma entrega, um despojamento nessa margem, que não só desnuda o corpo, mas também o modifica. Essa metamorfose nos assusta com a possibilidade de estarmos abrindo mão de nossa integridade e identidade. (p.52)


trecho do livro A  Alma Imoral de Nilton Bonder



Mas o que se passara durante o tempo no qual se tornara o que era hoje?


Thomas Mann no livro Tônio kroeger
Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein


Oscar Niemeyer
o cheiro que vence a chuva 
depois das águas
não muda
os lugares, os buracos
do nariz 
não trás o quintal 
de terra 
que engana 
as ruas

nem dura 
muito
além do sol
mas deixa tudo
úmido e pesado
quase vivo



Fernanda Tatagiba

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o

posso estar aqui
- o musgo é lento como a sombra -
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)

que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão



Luiza Neto Jorge

domingo, 8 de dezembro de 2013

2113

um dia eu sei farão
estátuas peroladas de nós dois
assim artistas claramente escuros
no centro ardido das multidões estreitas
e seremos mais eficazes que todas as placas
e mais abertos que todas as avenidas
porém entre os corpos muitos 
somente nos amarão os 
pombos que nunca
descobriram bem
onde se
depositar entre um voo
e outro 


Maíra F. 
ler em um domingo de sol, não por ser do contra que sou e quase anuncio com orgulho dedicado das moças da primeira fileira, não por que que me falta companhia e ir a praia sozinha é para poucos, não pelo conhecimento que me farta em desuso, ler agora é assoprar entre as orelhas de um livro, uma caridade silenciosa, a única possível

Fernanda Tatagiba

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

ando com essa urgência no bolso
mesmo sentada
todos os pulsos apontam
acordo as seis
no ranço da pressa 
de ontem 
povoada por qualquer instante
que me parta



Fernanda Tatagiba

A Lapa de Bandeira

Existia e ainda existe
Um certo beco na Lapa
Onde assistia, não assiste
Um poeta no fundo triste
No alto de um apartamento
Como no alto de uma escarpa.

Nos dias de minha vida
Em que me levava o vento
Como uma nave perdida
No cimo da escarpa erguida
Eu via uma luz discreta
Acender serenamente.

Era a ilha da amizade
Era o espírito do poeta
A buscar pela cidade
Minha louca mocidade
Como uma nave ferida
Perambulando patética



Vinícius de Moraes 


domingo, 1 de dezembro de 2013

a beleza de um velho 
não esta na fenda
de suas rugas
nos dias antigos
-manhas e tardes
que não terei
na sua lacuna
da morte
no cabelo 
ralo e sem cor

na juventude
sentada na estante
no anda distorcendo
o equilíbrio


a pele contorna o mistério
como uma pista gasta 

me olha
gastando o tempo
na resposta 



Fernanda Tatagiba 

A alegria

O sofrimento não tem 
nenhum valor 
Não acende um halo 
em volta de tua cabeça, não 
ilumina trecho algum 
de tua carne escura 
(nem mesmo o que iluminaria 
a lembrança ou a ilusão 
de uma alegria). 

Sofres tu, sofre 
um cachorro ferido, um inseto 
que o inseticida envenena. 
Será maior a tua dor 
que a daquele gato que viste 
a espinha quebrada a pau 
arrastando-se a berrar pela sarjeta 
sem ao menos poder morrer? 

A justiça é moral, a injustiça 
não. A dor 
te iguala a ratos e baratas 
que também de dentro dos esgotos 

espiam o sol 
e no seu corpo nojento 
de entre fezes 
querem estar contentes.



Ferreira Gullar