quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Água, livros, quadros e chicletes

Todas as bibliotecas que eu já fui até hoje não podem entrar com garrafinha de água. Pois é, mas conheci uma que deixava, alias deixa! O que antes achava lógico, imaginando que podia acontecer um acidente e alguém derrubar líquido nos livros, agora me parece muito estranho. Quando é proibido as chances de acontecer alguma coisa parecem muito maiores quando é muito simples e claro que é quase impossível alguém, por descuido derrubar água nos livros. Claro que podemos estar contando com pessoas que deliberadamente querem estragar o objeto, mas assim, as bibliotecas só seriam habitadas na ficção. 
Eu fui em uma exposição há uns anos atrás, acho que foi do Modiguiani, em que na lista de proibições para entrar estava mascar chicletes. Achei aquilo tão louco que até fotografei. Mas me falaram que alguém poderia, depois de bem mascado, cola os chiclete no quadro. Acho muito bom as pessoas incluírem o absurdo em suas vidas, mas por em pratica e até submeter outros a sua regras é um pouco demais, né. 
Outras vez, em um museu eu também presenciei uma mãe tendo que calçar as filhas pequenas que estavam descalças, ela pedia uma explicação por que da proibição: "regras, senhora". 
Talvez se as coisas fossem mais simples, sem tantos empecilhos e formalidades, a maioria das pessoas não acharia que esses lugares fossem não distantes. 
Aproveitando esse assunto de arte, temos que preservar, claro, mas também temos que admitir que nenhum quadro é eterno. E, depois que soube que o sol vai acabar andei estendendo isso para outras coisas também. Então, vamos incluir o risco, até em seu sentido literal, ao mundo das artes. Afinal, ruim é o roubo e volta e meia acontece um. Pior mesmo são as pessoas não irem ver uma exposição ou irem na biblioteca, e esse furto é diário. 


Fernanda Tatagiba

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser 
demasiado cheio de si, é estar demasiado enganado acerca de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, de generosidade, de doçura, de misericórdia... O excesso de seriedade, mesmo na virtude, tem algo de suspeito e de inquietante: deve haver alguma ilusão ou algum fanatismo nisso.

o que não é desesperador para um olhar lúcido? E o que não é fútil, para um olhar desesperado? Isso não nos impede de rir do que vemos, e é sem dúvida o que de melhor podemos fazer. Que valeria o amor, sem a alegria? O que valeria a alegria, sem o humor? Tudo o que não é trágico é irrisório. Eis o que a lucidez ensina. E o humor acrescenta, num sorriso, que não é trágico.

não acredito que haja em nós tanta infelicidade quanto vaidade, nem tanta malícia quanto tolice. [...] Nossa própria e peculiar condição é tão ridícula quanto risível. De que adianta se lamentar por tão pouco (por esse pouco que somos)? De que adianta se odiar (“o que odiamos levamos a sério”), quando basta rir?


COMTE-SPONVILLE
um breve desconhecido 
me aponta as horas

pulso
canhões de números

minto 
como se pudesse fugir 
de um susto

conto 
com menos tempo 


Fernanda Tatagiba
O modo como assassinaste a tua família
nada significa para mim
enquanto a tua boca percorre o meu corpo

Eu conheço os teus sonhos
de cidades arrasadas e cavalos em fúria
do sol demasiado perto
e da noite sem fim

Mas isso nada significa para mim
ante o teu corpo

Sei que lá fora uma guerra ruge
que tu transmite ordens
e bebês são afogados e generais degolados

Mas o sangue nada significa para mim
pois não altera a tua carne

Que a tua língua saiba a sangue
não me surpreende
enquanto os meus braços crescem no teu cabelo

Não penses que não compreendo
o que acontece
depois de as tropas serem massacradas
e as putas passadas à espada

Escrevo isto só para te roubar o prazer
quando uma manhã a minha cabeça
estiver dependurada com a dos generais
do portão da tua casa

Só para que saibas que previ tudo
e que isto nada significa para mim



Leonard Cohen
poema extraído do livro “Filhos da neve – Antologia poética” (Assírio & Alvim), 1985.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A gravida é o maior que o tempo, enchendo as paredes de relógios fincados, agarrando os muros a memória, arrastados pelo buraco. Gravidade, cume feito de pó, mais baixo que o chão. Leva as estradas a se perderem, presas em suas bordas se desfazem em caminhos. A perna, o encaixe do o pé, os braços balançam. Me penduro na dança dos dias. A gravidade, peso, esse é o tamanho de seu corpo. Cardume, voo que movimenta a vida. Uma luta, a fúria de uma criança nos primeiros passos, criando o templo do mundo com sua vitória impossível. 



Fernanda Tatagiba

sábado, 26 de outubro de 2013

o excesso de ironia é quando se quer chegar a superfície sem passar pela sutiliza 

o sarcasmo é quando tem mais riso que dente é querer ir mais fundo que o chão 

o cinismo é quando tem mais perdedor que jogo 


Fernanda Tatagiba 




"não é tão mal assim ser um pseudo intelectual de miolo mole. Talvez, não seja propriamente, pior do que ser um verdadeiro intelectual de miolo duro"


Caetano, respondendo a criticas de que seria ele um pseudo-intelectual de miolo mole. 
a superfície tem mais a dizer sobre a profundidade do que esta mesma


Nietzsche 
A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas dizem.


Linda Hutcheon

terça-feira, 22 de outubro de 2013

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

E deus encolhido fez-se chão e escolhido fez-se verbo


Thalita Covre 
o som que sobra
barulho 

o som que dobra
musica

o som que solta
dança

o som que volta
voa

o som que soma
soa

o som que some
sombra

o som que sou



Fernanda Tatagiba

prenúncio

fisgada de frio
fincada no vento

zunido 
de zinco 

a água embrulha 
o barulho da chuva

no sol quente 


Fernanda Tatagiba 
massa
éter
corpo

Su Noguchi

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Só por hoje e só

neste quarto onde me dispo
de meias, pele e coração,
ainda repousa o teu cheiro.

me despeço desse adeus
deixando a solidão vencer
tua lembrança entre meus lábios

porque hoje - e só por hoje -
vou deitar-me sem tua ausência
e sonhar que te esqueci. 



Carole B. do blog (link)

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

As coisas tem dias, datas certas e inventadas como os calendários. Tem dia de tudo, sempre feito para esse mesmo fim, para sabermos que é o dia de algo. Não há comemoração possível além da lembrança. Dia do irmão, do cachorro quente, dia da poesia. Os dias servem para isso. Para se encher com qualquer coisa que desvie, para evitar que se olhe no fundo das horas. As coisas tem seus dias mesmo que não escritos, mesmo se não lembradas. Todas elas tem, cada uma um dia, é assim que o mundo vai acabar no limite da extensão de um objeto. Foi assim que o tudo começou, em algum aniversário. 


Fernanda Tatagiba

Santori

Sentado, distraído, na pedra 
                          ao lado da cachoeira 
– eu sou um buda 
            de cabelos nublados 
                           e dedos de borracha. 

A água fria 
              franze a pele das costas. 
A samambaia sorri 
             com suas folhas 
                           crispadas pelo vento. 


Nada fora de lugar. 
                  Nenhum caos mental. 


Pelado, pêlos eriçados 
                   – secando ao sol 
sou apenas 
               mais uma 
                            espécie de vida 
                                                 entre muitas – 
viajando pelo tempo 
                           – que nunca existiu





Ademir Assunção

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

o dobra doma o voo da porta
dá vida a parede 

a mão se fecha 
enche de dedos

vira 
como quem vai 
para o lado 
que volta 


Fernanda Tatagiba

Mais tempo para acordar cedo

Dizem que acordar cedo você aproveita melhor o dia. Ando a acordando cedo mesmo, não sei se é por causa disso. Durante muito tempo fiquei dormindo tarde, e só quando precisava (por muita obrigação), acordava cedo. Será que meu tempo era menor nessa época? A medida que o tempo vai passando a gente vai pensando nele e gasta parte do tempo com isso. Chegamos mesmo a acordar mais cedo na esperança de mudar alguma coisa. Dormindo a gente não tem esse problema de ficar pensando, mas deixa de “aproveitar” mais o dia. 
Agora pensei em uma coisa, será que nossos sonhos que são muito diferentes quando éramos criança? Eu tenho a impressão que não. Sonho é sonho, não tem idade nem tanta memória assim. Talvez você sonhe com coisas de muito tempo atrás, que só quem vive um pouco mais pode sonhar, mas as vezes, muitas vezes o sonho é tão louco que não faz muita diferença isso. Quando eu era criança devia sonhar igual eu sonho hoje, não deve ter mudado muito. Mas já acordada, hoje, tento lembrar o sonho e querer que ele faça sentido, relacionar com alguma coisa da minha vida mesmo. Isso sim mudou. 
Nossa vida é temática dos nossos sonhos, mas os sonhos não mudam nossa vida. Eu lembro de já ter lido sobre uma tribo indígena em que, caso, antes de uma batalha, os guerreiros tivessem  um sonho “ruim” significaria que eles perderiam a guerra. O que significa que eles acreditavam que sim, o sonho interferiria na vida, mudaria algo. Acho um pouco injusto com o sonho não deixar que ele faça alguma diferença nos nossos dias. Um sonho bom, com alguém que gostamos mas ainda não nos revelamos poderia significar um telefonema, e até mesmo uma ida ao cinema. Da mesma forma um pesadelo poderia nos deixar pelo menos em dúvida em sair de casa. Se fizéssemos isso talvez o sonho começaria a ganhar um pouco mais de importância, mas como ignoramos, no máximo ficamos com uma impressão mais forte, mas logo ignoramos e esquecemos durante o dia. 
O sonho é como uma vida que fazemos a parte. Um terço do nosso tempo de existência a gente passa sonhando, um pouco menos, contando que não sonhamos todo tempo que dormimos, que não lembramos dos nossos sonhos e também pensando dos insones, que esses nem dormir as vezes dormem, quanto mais sonhar. Se acordar mais cedo para ganhar mais tempo é uma medida, deixar de dormir e sonhar também poderia ser. Se tivesse uma pílula mágica para deixar de dormir você tomaria? Eu sim, desde que também tivesse outro remédio para parar de pensar no tempo, então não adiantaria nada. Mas sonho é bom, eu gosto de sonhar.


Fernanda Tatagiba em sua primeira tentativa no gênero crônica, dedica ao Rubem Braga que escrevia sobre o "nada" e me deu coragem para tentar também  

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na minha biografia 
Quero uma polêmica 
Boas vendas

Que me façam conhecer o Japão 
e descubram um novo amor

um livro que vá fundo
alcance o gosto da tinta

Um apêndice
Póstumo
Para o meu desgosto

Quantos parágrafos
Cabem em um dia?

Revelariam minha cor favorita?

Despois de feita, lida
discutida as minhas escolhas

Poderei em fim
Ter uma vida só minha



Fernanda Tatagiba

os acrobatas

Subamos! 
Subamos acima 
Subamos além, subamos 
Acima do além, subamos! 
Com a posse física dos braços 
Inelutavelmente galgaremos 
O grande mar de estrelas 
Através de milênios de luz. 

Subamos! 
Como dois atletas 
O rosto petrificado 
No pálido sorriso do esforço 
Subamos acima 
Com a posse física dos braços 
E os músculos desmesurados 
Na calma convulsa da ascensão. 

Oh, acima 
Mais longe que tudo 
Além, mais longe que acima do além! 
Como dois acrobatas 
Subamos, lentíssimos 
Lá onde o infinito 
De tão infinito 
Nem mais nome tem 
Subamos! 

Tensos 
Pela corda luminosa 
Que pende invisível 
E cujos nós são astros 
Queimando nas mãos 
Subamos à tona 
Do grande mar de estrelas 
Onde dorme a noite 
Subamos! 

Tu e eu, herméticos 
As nádegas duras 
A carótida nodosa 
Na fibra do pescoço 
Os pés agudos em ponta. 

Como no espasmo. 

E quando 
Lá, acima 
Além, mais longe que acima do além 
Adiante do véu de Betelgeuse 
Depois do país de Altair 
Sobre o cérebro de Deus 

Num último impulso 
Libertados do espírito 
Despojados da carne 
Nós nos possuiremos. 

E morreremos 
Morreremos alto, imensamente 
IMENSAMENTE ALTO.


Vinícius de Moraes
Ver as ruas em silêncio.
A qualquer momento manchar os olhos de cimento
dessa minha existência dura, cinza e concreta
que mesmo quente, faz rolar pedras. 



Thalita Covre

em seu livro Cacos de verbos inflamados



sábado, 12 de outubro de 2013

liberdade é a consciência do limite

Mautner

O meu tempo

O meu tempo não é o seu tempo.
O meu tempo é só meu.

O seu tempo é seu e de qualquer pessoa,
até eu.

O seu tempo é o tempo que voa.
O meu tempo só vai onde eu vou.

O seu tempo está fora, regendo.
O meu dentro, sem lua e sem sol.

O seu tempo comanda os eventos.
O seu tempo é o tempo, o meu sou.

O seu tempo é só um para todos,
O meu tempo é mais um entre muitos.

O seu tempo se mede em minutos,
O meu muda e se perde entre os outros.

O meu tempo faz parte de mim,
não do que eu sigo.

O meu tempo acabará comigo
no meu fim.



Arnaldo Antunes

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Mãos

Uma trabalha mais que a outra
dividem o peso dos anéis
uma nunca aprendeu a escrever
com isso a outra tornou-se mais silenciosa
mais firme, mais acostumada ao adeus
em alguns gestos entram as duas
numa mesma coreografia
como quando é necessario contar algo
mais que cinco
aceitam as manchas dos anos
como solteironas
que envelhecem juntas

Ana Martins Marques
como se tivéssemos tempo 
nos olhamos 
e fomos parar no outro lado 
da rua 
em outra cidade



Fernanda Tatagiba

terça-feira, 8 de outubro de 2013

o primeiro beijo tem saliva curta 
e mãos no ombro

olhos mais baixos que o chão

a língua a frente do corpo
uma fome sem mãe 

o primeiro beijo 
é o mais contido
coletivo


o primeiro beijo
é único
dura até o último



Fernanda Tatagiba 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Quanto maior é uma esfera, 
e maior o raio de sua curva, 
mais se confunde com um plano: 
a do Universo 
é uma superfície sem margens, 
sem limites nem centro, 
sob a qual viaja com calma, 
enquanto a noite avança

Sarduy
o homem da frente
não tem a orelha esquerda

“como Van Gogh”
continuamos em silêncio

é pintor
de parede

será que foi ele?
talvez quisesse ser famoso
pintar quadros e depois cortar a orelha

qual desastre é maior que o outro?

no ônibus cheio
muitas orelhas
sem acontecimentos



Fernanda Tatagiba

domingo, 6 de outubro de 2013

Diante de Gauguin e de Van Gogh desenvolvi um complexo de inferioridade porque eles souberam se perder. Gaguin no se exílio. Van Gogh na sua loucura. Penso sempre que para encontrar a autenticidade é preciso que algo entre em colapso. 

Jean-Paul Sartre 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

poesia, isso, certos detalhes, imagens incomuns, o cuidado com a originalidade, nunces e delicadezas de linguagem que criam o grande poema

Mário de Andrade em carta para Drummond

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Ao Redor do Coração

Sete horas da manhã.
Meio raquítico
enferrujado
o sol veio ao mundo.
A vida mal alcançou nossas juntas.

Estamos à mesa
sentados frente a frente
cara a cara
tanto faz.
Um pouco dobrados
à canga cósmica
máscara triste
sim
mas estamos aqui
entre nossas conchas cartilaginosas
atrás de nossos narizes
debaixo dos cabelos
ao redor do coração.

Nossa pele - como está séria!
Porém, dentro de nós,
                                   rica em cálcio
                                   e banhada em gordurosa luz,
                                   a caveira sorri.


Lucinda Persona