domingo, 29 de setembro de 2013

o estalo do instante

primeiro de uma série de análise de imagens de beijo



1- Depois do Primeiro Beijo (Bouguereau)






Dois anjinhos nus sentados nas nuvens brancas. O anjo masculino abraça a anja com ímpeto e ternura. Ela, com o corpo recolhido e braço esquerdo insinua um gesto de afastamento do beijo, indicando que apesar da ação concluída, há um sentimento de recusa. Porém, ambiguamente, sua fisionomia mostra que ela recebe o beijo com um agrado contido.
A nuvem parece sólida e concreta, o pano caído dá uma ideia de fluidez e instantaneidade, remetendo ao nosso olhar interferindo na ação, a visão humano que movimenta e dá atrito ao plano divino, o olhar do pecador que precisa de algo que se entrepõe ao desejo. 
O pano que cai contrapõe a nuvem estática, nos fazendo perceber que não se trata do mesmo espaço terreno, e sim de um plano com outra atmosfera. O pano esta dividindo as duas figuras, como que marcasse uma impossibilidade, sendo o único elemento “humano” da imagem, com isso talvez seja a presença da lembrança do pecado original, não dos anjos, mas talvez nossa que não poderíamos olhar dois anjinhos se beijando sem a malícia concedida por Eva.  
Os dois corpos tem uma expressão humana, mesmo de asas estão sentados, e não "livres" voando, como poderia supor, estão presos na condição de observados, condenados pelo olhar. 
A perna do anjo masculino esta esticada, codificando quem é o autor da ação, e a anjinha esta sentada na nuvem, em um plano acima, nos remetendo a idealização feminina. A nuvens “sólida” nos lembra que os sentimentos, que parecem feito de nada, poeira branca e passageira como as nuvens que vemos no céu pode ser concreto e real. O recolhimento da representação feminina é esperado por se tratar de uma figura angelical, nos trazendo a tradição religiosa e sua força pudica. 
A separação do masculino e do feminino é marcada pelo pano que divide o quadro ao meio, assim como também pela asas da anja que lembra uma asa de borboleta nos lembrando ao plano terrestre, como se ela, mesmo em um plano superior em relação ao anjo, ela tem a marca "humana", não podendo ser vista como plena da divindade. Enquanto que o sexo do anjo é coberto involuntariamente pelo movimento do pano azul, na anja é ela que cobre ao cruzar as pernas, mostrando que esta é uma atitude intencional de se guardar, remetendo a noção de que caberia a mulher o sentimento de vergonha e assim, de contenção do desejo. 
A partir dessa perspectiva, a anjinha que no primeiro momento pode ser vista como recatada e com isso mais inocente, com sua atitude medida contrasta com o impulso "primitivo" do beijo do anjo, que mesmo mais próximo do plano terreno, tem uma áurea mais infantil.  
O quadro é predominantemente branco, destacando ao centro a imagem do beijo dos anjinhos, essa simplicidade de elementos reforça a ideia de suspensão do tempo e espaço, que por um lado impregna de eternidade a pintura, por outro, nos leva a uma imagem primária alegoricamente relacionada com o mito da criação cristã. 
O quadro é o retrato da inocência perdida, uma nostalgia do impulso do primeiro encontro, da timidez frente ao outro.


Fernanda Tatagiba

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

mendigos embaixo das marquises dos bancos 
entre a barriga e o joelho um buraco faz sombra
no túnel que atravessa até o outro lado
ainda assim distante 

Fernanda Tatagiba


Um clima agitado e frio, quente e agora parado
Que coração aguenta o hoje?
não me diga que é primavera, pois mentes
Eu sou louco.
a bolha no pé, a solidão na cabeça
não me diga que é primavera, eu sofro
Eu sou louco.
Hoje eu aguento porque amo o dia cinza
mas você do outro lado
não aguenta, sofre o dobro
eu sou louco
Que comprimidos foram esses que tomei?
pois mentes, não é primavera
eu sofro
eu sou louco.
eu
um dia amei mas deixei aqui guardado.



Anderson Bardot 

O Furo

filmes passam no retrovisor
você passeia
entre as tantas pernas
da Presidente Vargas
eu sei de cor
a cor e o frio
da sua meia



Taís de Amorim 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta e escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Chama-se poeta justamente o homem que cria estas regras poéticas

Maiakovski
agora você está morando em outra cidade
e pensar que até do mesmo bairro ja fomos
quando a gente nem se conhecia
- todas as vezes que não te vejo
volto um pouco ao bom dia que demos 
sem saber
e assim vou esquecendo 

você nessa cidade 
(já em outra casa)
fazia o risco diabólico do encontro
preencher um domingo inteiro
indo até o sábado anterior
voltando comigo pra casa

me levava ao cinema
como se a lembrança fosse parte da calçada

agora você em outra cidade
o acaso pesa
deixando a surpresa
mais real que possível



Fernanda Tatagiba
quanto + / pobre + / negro / quanto + / negro + / alvo /quanto + / alvo + / morto / quanto + / morto + / um

Ricardo Aleixo
olhos abertos no rastro de formato 
verões inteiros desafiados como uma esfinge em frente ao sol, esperando o sono
a surpresa fazendo do exercício da vinda um exército em pleno sábado
pernas se encaixando em caminhos sentados até o chão
alguém pendurado no tempo 
o ângulo torto que nos separa não é maior que a lâmpada seca do quarto ao lado
um feixe rangendo no corredor
enfiado como uma lâmina na ponta da cama
o vazio da ausência da morte 
restos em muitos cantos
varandas descobertas 
na madrugada um carro passa com um farol apagado
vira, se arrisca a ser esquecido
a manhã começa com barulho
muitos dormem 


Fernanda Tatagiba

segunda-feira, 16 de setembro de 2013